Apesar da promessa de racionalização, a reforma tributária traz consigo um risco significativo: o aumento exponencial de judicialização, com potencial de sobrecarregar o Judiciário e comprometer a efetividade do novo modelo.
Em suma, a reforma preserva a autonomia dos entes federativos – União, estados e municípios – ao mesmo tempo em que cria um fato gerador único para as operações com bens, serviços e direitos. Antes, cada ente tributava fatos geradores distintos, com competências bem delimitadas: a União com PIS, Cofins e IPI; os estados com ICMS; e os municípios com ISS. Agora, com o IVA dual (CBS para a União e IBS para estados e municípios), todos os entes passam a compartilhar a competência sobre o mesmo fato gerador.
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Esse desenho, embora respeite o federalismo, multiplica os potenciais polos de cobrança e fiscalização. Uma empresa que realize operações interestaduais ou intermunicipais poderá ser cobrada por até 5.000 municípios, 27 estados e a União, caso haja questionamentos sobre a operação. O risco de múltiplas autuações e execuções fiscais sobre o mesmo fato é real, especialmente em um país com histórico de litígios tributários volumosos.
A tributação no destino e a complexidade operacional
Outro ponto de inflexão é a mudança do critério de tributação da origem para o destino. Agora, o imposto será devido ao local de consumo, e não mais ao local de produção ou prestação do serviço. Isso obriga empresas a apurarem e recolherem tributos considerando as alíquotas e regras de cada ente federativo de destino, aumentando a complexidade operacional e o risco de erros, autuações e, consequentemente, litígios.
Para grandes empresas de e-commerce, por exemplo, que vendem para todo o país, será necessário acompanhar e aplicar corretamente as regras de milhares de municípios e dezenas de estados, além da União. Cada ente poderá fiscalizar e autuar de forma independente um mesmo fato gerador, elevando o potencial de conflitos e judicialização.
O risco de colapso do Judiciário
Há um alerta para o risco de agravamento exponencial da crise do Judiciário, já detectada e ainda não solucionada pelo Conselho Nacional de Justiça, caso não sejam adotadas medidas para mitigar a multiplicação de processos. O cenário atual já é de altíssima litigiosidade, com o Brasil figurando entre os países com maior volume de contencioso tributário do mundo. A manutenção da competência de todos os entes para fiscalização e cobrança do mesmo tributo, agora sobre um fato gerador único, pode triplicar o número de litígios. A constatação é feita pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ).
Além disso, a jurisprudência aponta que, para questionar a exigência de um tributo, o contribuinte deve ajuizar a ação no domicílio do ente federativo competente. Assim, uma empresa que atue nacionalmente poderá ser obrigada a litigar em múltiplas jurisdições, fragmentando a discussão e dificultando a uniformização de entendimentos.
Soluções e propostas para mitigar a judicialização
Apesar do cenário preocupante, há caminhos possíveis para evitar o excesso de judicialização. Entre as soluções debatidas destacam-se:
- Unificação do contencioso administrativo: a criação de um contencioso administrativo único para o IBS, envolvendo estados e municípios, já está prevista via Comitê Gestor. Isso pode evitar múltiplas autuações sobre o mesmo fato e permitir decisões uniformes na esfera administrativa;
- Foro nacional para o IBS e CBS: está em discussão no Congresso Nacional a criação de um foro nacional para as ações relativas ao IBS e à CBS, permitindo que o contribuinte ajuíze ações no seu domicílio, e não em cada ente federativo envolvido. Isso exigirá alterações constitucionais e legais, mas pode racionalizar o acesso à Justiça e evitar a pulverização de processos;
- Instrumentos de uniformização de jurisprudência: o uso ampliado de mecanismos como o Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR) e a possibilidade de ações diretas de legalidade no STJ podem acelerar a consolidação de entendimentos e evitar decisões conflitantes;
- Vinculação de decisões: a vinculação das decisões dos tribunais superiores às instâncias inferiores pode garantir maior segurança jurídica e previsibilidade, reduzindo o incentivo à litigância;
- Aprimoramento da legislação complementar: a elaboração de leis complementares claras, objetivas e alinhadas com a jurisprudência consolidada é fundamental para evitar ambiguidades e disputas interpretativas.
A reforma tributária brasileira é um passo necessário para a modernização do sistema fiscal, mas seu sucesso depende da capacidade de mitigar os riscos de judicialização excessiva. A experiência mostra que a simplificação legislativa, por si só, não elimina conflitos, especialmente em um ambiente federativo complexo.
A adoção de mecanismos de cooperação, uniformização e racionalização do contencioso, além de mecânicas de soluções alternativas de litígios, como a arbitragem, é imprescindível para que a promessa de simplificação se traduza em realidade, evitando que o Judiciário se torne o novo gargalo do sistema tributário nacional.