Nos últimos anos, o Brasil tem enfrentado recorrentes episódios de desabastecimento de insulina, especialmente no Sistema Único de Saúde (SUS). Trata-se de uma falha grave na política pública de assistência farmacêutica, cujas consequências vão muito além da quebra de um contrato de fornecimento ou de um erro logístico. Para milhares de pacientes com diabetes tipo 1 e tipo 2, a falta de insulina significa risco real de morte, agravamento de quadros clínicos e perda da autonomia.
Apesar de a insulina estar incluída na Relação Nacional de Medicamentos Essenciais (Rename) – conforme Portaria GM/MS 2.981/2022 – e ter sua dispensação garantida pelo SUS, a escassez tem se tornado uma realidade crônica em diversas regiões do país.
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Essa situação tem levado à judicialização da saúde em larga escala, ao aumento da pressão sobre os serviços de urgência e, em alguns casos, à necessidade de importar medicamentos por vias alternativas, como medida emergencial.
As causas desse cenário são múltiplas, mas todas passam por um denominador comum: a ausência de planejamento estratégico eficaz. A aquisição de insulina, especialmente das versões análogas, é altamente dependente de fornecedores internacionais. Três grandes laboratórios concentram o mercado mundial — Novo Nordisk, Sanofi e Eli Lilly — o que fragiliza a capacidade de negociação do Brasil e o expõe a riscos logísticos, variações cambiais e crises de produção global.
Além disso, os processos de aquisição no setor público seguem sendo lentos, fragmentados e muitas vezes burocráticos. A falta de estoques reguladores nacionais e de uma política de compras coordenada entre União, estados e municípios contribui para o descompasso entre demanda e fornecimento.
O relatório de auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU), Acórdão 1656/2023 – Plenário, alertou para falhas no planejamento e na execução das aquisições centralizadas de medicamentos, incluindo a insulina, com impacto direto na entrega aos usuários do SUS.
Em resposta às emergências, o Ministério da Saúde tem recorrido à importação excepcional de medicamentos sem registro na Anvisa, com fundamento na RDC 203/2017. Essa norma permite, em caráter temporário, a aquisição de medicamentos aprovados por autoridades regulatórias internacionais reconhecidas, como FDA (EUA) e EMA (Europa), para garantir o abastecimento em situações de risco sanitário. A estratégia tem se mostrado eficaz e segura, além de, em alguns casos, gerar economia ao erário ao ampliar a competitividade da compra pública.
A produção pública nacional, por sua vez, ainda está aquém do necessário. Embora existam iniciativas como as Parcerias para o Desenvolvimento Produtivo (PDPs), envolvendo laboratórios públicos e privados, o Brasil ainda não possui uma planta em operação com capacidade suficiente para garantir o abastecimento interno de insulina.
A Hemobrás, que poderia se tornar um polo estratégico na produção de medicamentos biotecnológicos, ainda não atua nesse segmento. Além dela, outros parceiros fundamentais — como os laboratórios públicos estaduais, a exemplo de Farmanguinhos (Fiocruz), o Instituto Vital Brazil e o Lafepe — poderiam ser fortalecidos para compor uma rede de produção nacional coordenada, focada na segurança farmacêutica do país. Contudo, faltam investimento, coordenação e estratégia de longo prazo.
Do ponto de vista jurídico, o quadro é alarmante. A Constituição Federal de 1988 é categórica: a saúde é direito de todos e dever do Estado (artigo 196). A ausência de insulina na rede pública viola esse preceito, além de afetar diretamente os princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade material. O paciente que depende de uma caneta de insulina para viver com qualidade não pode ser tratado como uma variável secundária de um orçamento ou de um edital mal conduzido.
Segundo dados da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS (Conitec), o Brasil tem hoje mais de 13 milhões de pessoas vivendo com diabetes, das quais cerca de 1,5 milhão dependem de insulinoterapia regular. O fornecimento público adequado é, portanto, uma questão de saúde coletiva.
O caminho para solucionar esse problema exige ações coordenadas em três frentes. Primeiro, é necessário reestruturar os processos de aquisição pública, com maior previsibilidade, transparência e agilidade. Segundo, o Brasil precisa investir em infraestrutura produtiva nacional, reduzindo sua dependência externa e ampliando a segurança do fornecimento. E, por fim, é urgente consolidar um sistema regulatório que permita o uso racional de mecanismos de importação excepcional em situações comprovadas de risco sanitário.
A ausência de insulina é, antes de tudo, uma ausência de Estado. Quando a máquina pública falha em prover um medicamento essencial, ela não apenas compromete a saúde da população, ela rompe o pacto constitucional de proteção à vida. É hora de colocar a insulina no centro do debate sobre políticas públicas de saúde. Porque viver com diabetes já é um desafio diário; viver sem insulina, no Brasil de 2025, deveria ser inaceitável.