Não é novidade que o avanço tecnológico tem refletido na seara tributária, desde a administração fiscal, a partir da fiscalização, até o cumprimento das responsabilidades passivas pelos contribuintes, sejam elas principais ou acessórias.
Do uso de big data e analytics à blockchain, da emissão digital de notas fiscais (e-invoicing) à tributação de criptoativos, as novas ferramentas moldam um ambiente fiscal automatizado, ágil e cada vez menos mediado pela ação humana direta.
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Contudo, essa digitalização progressiva, acelerada pela promulgação da EC 132/2023 (reforma tributária), exige uma análise que transcenda a eficiência arrecadatória e investigue os impactos sociais, econômicos e jurídicos dessa transformação, sobretudo sobre grupos historicamente marginalizados, como mulheres negras, trabalhadoras informais e populações periféricas.
Nesse cenário, a regressividade tributária, centrada na tributação do consumo, impacta de forma mais intensa as mulheres, especialmente quando se considera um recorte interseccional de gênero, raça e classe.
Isso ocorre em razão do Brasil manter um dos sistemas tributários mais regressivos do mundo, com mais de 50% da arrecadação centrada em tributos sobre o consumo, como ICMS e PIS/Cofins. Essa lógica tributária penaliza proporcionalmente mais quem ganha menos, pois incide sobre bens essenciais de forma linear, desconsiderando a capacidade contributiva real do contribuinte.
A título de contextualização, a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF 2017-2018) revelou que os 10% mais pobres da população brasileira destinam, em média, 26,4% da sua renda total ao pagamento de tributos, ao passo que os 10% mais ricos contribuem com apenas 19,2% — uma disparidade alarmante. Ainda mais grave é a constatação de que, entre os mais pobres, 42% são mulheres negras, o que demonstra a centralidade do fator racial e de gênero na regressividade do sistema[1].
É nesse cenário que a reforma tributária traz dois mecanismos que buscam mitigar parte dessas desigualdades através de inovações tecnológicas: o cashback e o split payment. O primeiro consiste na devolução de parte do tributo pago por famílias de baixa renda, com o objetivo de suavizar os efeitos da tributação indireta. O segundo trata da divisão automatizada do valor da transação entre contribuinte e fisco, eliminando etapas intermediárias de declaração e pagamento.
Embora bem-intencionados, esses mecanismos carecem de aderência concreta à realidade social brasileira. A proposta de devolução via cashback, por exemplo, prevê o uso de contas digitais ou cartões eletrônicos. No entanto, a PNAD-TIC 2023 aponta que cerca de 6 milhões de lares brasileiros ainda não possuem acesso à internet — um contingente expressivo em que predominam famílias chefiadas por mulheres e localizadas em áreas rurais ou periféricas.
Além disso, mais de 30% das pessoas que não utilizam internet o fazem por razões econômicas, revelando que as mesmas famílias que seriam beneficiárias do cashback são justamente as mais excluídas do acesso digital necessário para viabilizá-lo.[2]
A dificuldade tecnológica, portanto, não é periférica ao debate: ela é central. Trata-se de uma barreira estrutural que compromete a eficácia redistributiva da política fiscal digitalizada. Como adverte Borges, a desigualdade de acesso à tecnologia fiscal pode reforçar ainda mais a marginalização de segmentos que deveriam ser protegidos pela política pública.
O split payment, por sua vez, carrega consigo o risco de exclusão operacional. Se, por um lado, promove maior segurança jurídica e combate à evasão fiscal[3], por outro, impõe uma nova camada de exigência técnica, que inclui conectividade em tempo real, adequação de sistemas e padronização digital.[4]
Tais demandas, em um país marcado por assimetrias regionais severas e baixa inclusão digital, podem ocasionar evasões para a informalidade, gerando sanções e exclusão tributária — ainda que, em um primeiro momento, tenha havido a exclusão das nano empreendedoras de se submeterem a tal exigência, o que não acarretará, pelo menos nesta análise originária, um prejuízo evidente e mais direto como observado no caso do cashback.
Some-se a isso o fato de regiões rurais, remotas ou de difícil acesso, carecerem de cobertura adequada de internet, devido a barreiras geográficas, altos custos de expansão de infraestrutura, e instabilidade no fornecimento de energia elétrica. Além disso, fatores socioeconômicos limitam a capacidade de muitos indivíduos e pequenas empresas de acessar internet de qualidade ou dispositivos adequados para operar sistemas digitais com segurança e eficácia.
Logo, é necessária a defesa de que empresas de menor porte e nano-empreendedoras sigam fora das exigências do split payment na reforma, para que não se intensifique a desigualdade de gênero e de vulnerabilidades como acima desenhado. Isto porque, a complexidade operacional, a antecipação de tributos e a dependência de mecanismos eficazes de restituição poderiam representar obstáculos intransponíveis para mulheres de baixa renda que atuam na economia informal ou em pequenos negócios.
Sobre o tema, destaque-se pesquisa realizada pelo Sebrae[5] em que se verifica que o número de optantes pelo Simples Nacional aumentou de 2,5 milhões para 21 milhões em 2022, sendo 14 milhões de MEIs e 7 milhões de MEs e EPPs. Tal índice segue crescente após a Receita Federal divulgar que mais de 657 mil pequenos negócios passaram a fazer parte do Simples Nacional em 2024[6].
Esses dados corroboram as informações supra defendidas de que o split payment, se exigido em todos os níveis dos regimes tributários, encontraria barreiras sistêmicas diante a realidade empresarial-brasileira, que é majoritariamente composta por regimes societários e tributários simplificados, o que, portanto, reverberaria em empecilhos generificados e racializados, já que, no Brasil, as mulheres representam 43,7 dos Microempreendedores Individuais (MEIs)[7] — ainda que apenas 16,3% delas recebam acima de R$4.000,00 (2025).
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Logo, pensar em split payment vai além das possibilidades da tecnologia da informação em evitar fraude e simplificar pagamentos e créditos, é, acima de tudo, pensá-lo dentro de uma conjuntura nacional com cenários de desigualdade de gênero, racial e regional como plano de fundo.
A reforma tributária, ao apostar na tecnologia como ferramenta de modernização, não pode desconsiderar as barreiras materiais e estruturais que impedem parte significativa da população de acessar seus supostos benefícios. A promoção da justiça fiscal exige a incorporação ativa de políticas afirmativas, a revisão de práticas regressivas, e o comprometimento com a equidade interseccional.
Medidas como o cashback e o split payment devem ser acompanhadas de políticas públicas complementares de inclusão digital, acesso bancário, assistência contábil e formação cidadã, sob pena de transformar mecanismos de justiça fiscal em novas formas de exclusão. Em um país marcado por profundas desigualdades de gênero, raça e território, é urgente que a política tributária seja também uma política de reparação, equidade e dignidade.
[1]MENEZES, Luiza Machado de O. Memória, afeto e esperança: nossa história de luta pela inclusão da perspectiva de gênero na reforma tributária. Revista Direito Tributário Atual, São Paulo, ano 42, n. 56, p. 731-751, 2024.
[2]IBGE. Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/41024-internet-foi-acessada-em-72-5-milhoes-de-domicilios-do-pais-em-2023#:~:text=Em%202023%2C%20havia%2072%2C5,%25%20para%2081%2C0%25. Último acesso em: 13 maio 25.
[3]NERIS, Leandro Mendes. Tributação e Inteligência Artificial: a aplicação do split payment no Brasil sob a ótica da reforma tributária. Revista Observatorio de La Economia Latino Americana. Curitiba, v.22, n.10, p. 01-14. 2024. Disponível em: https://ojs.observatoriolatinoamericano.com/ojs/index.php/olel/article/view/7526/4688. Último acesso em: 02 maio 25.
[4]Fronteiras da inclusão digital [livro eletrônico]: Dinâmicas sociais e políticas públicas de acesso à Internet em pequenos municípios brasileiros. Editora Núcleo de Informação e Coordenação do Ponto BR. São Paulo, SP: Comitê Gestor da Internet no Brasil, 2022.
[5]SEBRAE. Simples Nacional: 15 anos. Disponível em: https://sebrae.com.br/sites/PortalSebrae/artigos/simples-nacional-15-anos,ed271fe78c9ec510VgnVCM1000004c00210aRCRD#:~:text=Neste%20per%C3%ADodo%2C%20o%20n%C3%BAmero%20de,confirmam%20a%20satisfa%C3%A7%C3%A3o%20dos%20empres%C3%A1rios. Último acesso em: 19 maio 25.
[6]RECEITA FEDERAL. Boletim do 1º quadrimestre de 2024. Disponível em: https://www.gov.br/empresas-e-negocios/pt-br/mapa-de-empresas/boletins/mapa-de-empresas-boletim-1o-quadrimestre-2024.pdf. Último acesso em: 19 maio 25.
[7] VALOR ECONÔMICO. Pesquisa aponta que mais de 44% dos MEIs são mulheres, mas só 16,3% faturam acima de R$4.000,00. Disponível em: https://valor.globo.com/patrocinado/pressworks/noticia/2025/03/07/pesquisa-aponta-que-mais-de-44-dos-meis-sao-mulheres-mas-so-163-faturam-acima-de-r-400000.ghtml. Último acesso em: 19 maio 25.