Na complexa engrenagem do sistema tributário brasileiro, a formação da jurisprudência exige a atuação coordenada de instituições com papéis distintos, mas complementares.
O Supremo Tribunal Federal (STF), o Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) representam vértices fundamentais na interpretação, aplicação e uniformização do direito tributário. Com atribuições específicas delineadas pela Constituição Federal e pela legislação infraconstitucional, essas instâncias moldam a forma como o Estado e o contribuinte interagem no plano fiscal.
Conheça o JOTA PRO Tributos, plataforma de monitoramento tributário para empresas e escritórios com decisões e movimentações do Carf, STJ e STF
Neste segundo artigo da série Jurisprudência Tributária na Prática, tratamos dos principais órgãos que moldam a espinha dorsal da jurisprudência tributária federal no Brasil.
O guardião da Constituição
O STF, nos termos dos artigos 101 a 103-A da Constituição Federal de 1988 (CF/88), é o intérprete máximo da Constituição, sendo, portanto, o responsável por dar a última palavra em questões constitucionais, inclusive tributárias.
Essa competência é exercida, com preponderância, por meio de recursos – com destaque a recurso extraordinário (RE e ARE), embargos de divergência (EDv), todos disciplinados no Código de Processo Civil (CPC) nos artigos 1.029 a 1.044, – e ações originárias, a exemplo da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) e da Reclamação (Rcl).
A importância do STF na construção da jurisprudência tributária se intensificou com a introdução do instituto da repercussão geral pela Emenda Constitucional 45/2004, incluída no CPC de 1973 pela Lei 11.418/2006 e contemplada no CPC/2015 com ênfase pelo seu artigo 1.035.
Por meio da repercussão geral, o STF passa a julgar apenas os casos com relevância social, política, econômica ou jurídica que ultrapassem os interesses das partes do processo, ampliando o impacto de suas decisões, que passam a vincular os demais tribunais do país e a orientar a Administração Pública.
O tribunal atua como catalisador da segurança jurídica, a fim de reduzir a multiplicidade de decisões sobre temas semelhantes e promover a uniformização da interpretação da Constituição, especialmente em temas tributários sensíveis que envolvem repartição de receitas, imunidades, competências e princípios como a legalidade e a isonomia.
A última palavra em matéria legal
O STJ, por sua vez, exerce a função de guardião da legislação federal, conforme estabelecido nos artigos 104 e 105 da CF/88. Seu papel é decisivo na interpretação da norma infraconstitucional tributária, ou seja, das leis que disciplinam a arrecadação e a fiscalização dos tributos.
O STJ exerce sua competência por meio do recurso especial (REsp e AREsp) e embargos de divergência (EREsp), todos previstos nos mesmos dispositivos do CPC que regulam o recurso extraordinário[1]. Um dos grandes marcos de sua atuação foi a criação do rito dos recursos repetitivos pela Lei 11.672/2008, que inseriu o artigo 543-C no CPC/73.
Esse mecanismo, hoje regulamentado pelo CPC/2015, com destaque aos artigos 1.036 a 1.041, possibilita o julgamento concentrado de múltiplos recursos sobre a mesma controvérsia, atribuindo eficácia vinculante à tese firmada.
Assim como no STF, a objetivação do processo e a eficácia expansiva dos precedentes consolidam o papel do STJ como agente de estabilidade e previsibilidade jurídica. Além disso, a Emenda Constitucional 125/2022 introduziu a arguição de relevância nos recursos especiais, ainda pendente de regulamentação, o que poderá aproximar ainda mais os critérios de admissibilidade do REsp à repercussão geral do STF.
O vértice administrativo do contencioso tributário
No âmbito administrativo, o Carf se apresenta como a última instância na esfera federal. Estruturado em seções especializadas por matéria – como IRPJ, IRPF, contribuições previdenciárias, IPI, PIS, Cofins, entre outras – o órgão julga os recursos em face de autuações fiscais – mais precisamente, contra decisões da Secretaria da Receita Federal em processos fiscais – com base no Decreto 70.235/1972.
Diferentemente do STF e do STJ, o Carf não exerce controle de constitucionalidade de lei (Súmula Carf 2), nem atua em concomitância com o Judiciário (Súmula Carf 1). No entanto, por força do seu Regimento Interno (Portaria MF 1.634/2023, atualizado até a Portaria MF 1.918/2024 – Ricarf), está sujeito à vinculação obrigatória aos precedentes firmados em repercussão geral pelo STF e em recurso repetitivo pelo STJ, o que cria uma rede de coerência entre as esferas administrativa e judicial.
Além disso, o Carf possui seu próprio sistema de precedentes internos, composto por súmulas aprovadas por seu Órgão Pleno e por enunciados vinculantes à RFB e às suas Delegacias de Julgamento (DRJ), com fundamento no artigo 87, parágrafo único, incisos I e II, da CF/88, reforçando sua autoridade institucional no âmbito da Administração Pública Federal.
Um ponto de controvérsia e debate reside no chamado voto de qualidade, em que, em caso de empate, o voto de desempate é proferido pelo presidente da turma – conselheiro representante da Fazenda Nacional –, o que tem gerado discussões sobre imparcialidade e equidade no julgamento administrativo.
Convergência institucional e formação da jurisprudência
O sistema brasileiro de precedentes tributários mostra-se hoje um complexo mosaico interinstitucional, no qual o STF, o STJ e o Carf dialogam direta ou indiretamente na construção da jurisprudência. Cada instância possui sua função própria: o STF, como intérprete da Constituição; o STJ, como intérprete da legislação federal; e o Carf, como instância técnica-administrativa de julgamento tributário.
Inscreva-se no canal de notícias tributárias do JOTA no WhatsApp e fique por dentro das principais discussões!
Com o avanço dos mecanismos de uniformização – como a repercussão geral, o recurso repetitivo e a vinculação administrativa – o Brasil caminha para um modelo mais estável e previsível, o que é essencial para o ambiente de negócios, a cidadania fiscal e a arrecadação eficiente. A integração dos entendimentos dessas três esferas é essencial para evitar decisões conflitantes, promover segurança jurídica e garantir o respeito aos direitos fundamentais dos contribuintes.
Contudo, desafios persistem: a morosidade dos processos, a insegurança derivada de mudanças frequentes de orientação e a necessidade de maior transparência e isonomia no julgamento administrativo ainda impõem barreiras à consolidação de uma jurisprudência tributária madura e funcional.
A contínua modernização dos institutos processuais e o fortalecimento da cultura de precedentes são caminhos promissores para um contencioso tributário mais eficiente, tanto na função de ferramenta à solução de litígios, como na ótica da legitimidade do seu resultado, ou seja, do cumprimento da sua decisão pelo fisco e pelo contribuinte.
[1] Também merece ser pontuado o uso da Reclamação (Rcl), cujo acolhimento no STJ ainda é tímido, muito por conta da posição firmada por sua Corte Especial na Rcl nº 36.476/SP, mas há de ser ampliado com a revisitação do tema pelo Tribunal da Cidadania.