Presidencialismo formal, prática informal
Constitucionalmente, o Brasil adota um sistema presidencialista. Mas a prática institucional dos últimos anos, especialmente desde 2016, tem revelado algo diferente: a emergência de um arranjo híbrido, sem base normativa clara, no qual o Poder Executivo é cada vez mais partilhado – informalmente – com o Congresso Nacional e com o Supremo Tribunal Federal (STF)
Não se trata apenas de um deslocamento de protagonismo político. O que se observa é a erosão da lógica original do presidencialismo de coalizão, substituída por uma forma de semipresidencialismo de fato, operado por dentro do sistema sem o devido regramento constitucional.
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O presidente da República perdeu o monopólio da iniciativa política e da execução orçamentária. O Legislativo se empoderou, mas sem assumir as responsabilidades da governança. E o Judiciário – notadamente o STF – tornou-se árbitro informal das crises e, por vezes, coprotagonista da deliberação nacional.
Da coalizão hegemônica à coalizão improvisada
Nos anos FHC e Lula (1995-2010), o presidencialismo de coalizão funcionava com alguma previsibilidade. O presidente montava uma base multipartidária estável, controlava a execução orçamentária e negociava com o Congresso em torno de emendas, cargos e lideranças.
Reformas estruturais e programas sociais robustos foram viabilizados nesse modelo, com o Executivo ditando o ritmo da agenda legislativa. O Legislativo tinha poder, mas operava – majoritariamente – como sócio minoritário.
Essa lógica começou a ruir a partir do segundo mandato de Dilma Rousseff. Com o desgaste político das manifestações de 2013, a recessão econômica e o impacto da Lava Jato, Dilma perdeu sua base congressual e sancionou, em 2015, a Emenda Constitucional 86, que introduziu as emendas parlamentares impositivas. Foi um gesto desesperado para sobreviver ao processo de impeachment – e acabou sendo o marco inaugural de uma nova era institucional, na qual o Congresso passou a controlar parte significativa do orçamento, sem depender da vontade presidencial.
O impeachment de Dilma selou essa virada. Foi menos um juízo técnico sobre as pedaladas fiscais e mais um voto político de desconfiança. Com isso, o Legislativo passou a perceber que poder de veto e poder de agenda podiam ser exercidos sem custo institucional, invertendo o jogo tradicional do presidencialismo.
Temer, Bolsonaro e o novo pacto informal
O governo Temer foi o laboratório dessa nova ordem. Sem capital político próprio, o então presidente governou como um primeiro-ministro tolerado por uma maioria parlamentar heterogênea. A sobrevivência do governo frente a denúncias criminais foi garantida por uma Câmara já empoderada, que aprovou reformas como o teto de gastos e ampliou o orçamento impositivo.
Mas foi com Bolsonaro que o modelo atingiu seu auge (ou abismo, dependendo do ponto de vista). Eleito com discurso antipolítico e promessas de romper com o “toma lá, dá cá”, Bolsonaro tentou governar sem coalizão. O resultado foi o isolamento e o colapso da coordenação política.
A partir de 2020, pressionado por pedidos de impeachment, cedeu ao centrão: entregou ministérios, liberou emendas e abandonou qualquer pretensão programática. O Congresso, por sua vez, criou e refinou as emendas de relator (RP9) – o chamado orçamento secreto –, que concentrou bilhões em redutos eleitorais de aliados, muitas vezes sem qualquer transparência.
A consequência foi a captura do orçamento discricionário da União pelo Legislativo. Estima-se que, em 2022, cerca de 25% da verba discricionária estivesse sob comando direto de parlamentares. Um quarto do investimento público definido sem critério técnico, sem planejamento central e sem responsabilidade executiva.
Nesse cenário, o presidente da Câmara – seja Rodrigo Maia, seja Arthur Lira – tornou-se uma figura quase equivalente a um premiê informal, sem ser formalmente responsabilizado por políticas públicas.
E o STF virou Poder Moderador
O Supremo Tribunal Federal também se reinventou nesse ciclo. Em face de um Executivo instável e um Legislativo cada vez mais autônomo, o STF passou a atuar como Poder Moderador informal: decidiu conflitos entre os Poderes, impôs limites à execução de emendas secretas, garantiu a autonomia federativa durante a pandemia e abriu inquéritos para investigar ameaças à democracia.
A liminar da ADI 7697, que questionou a impositividade absoluta das emendas parlamentares, é emblemática. E o acordo costurado em 2024 entre Supremo, Congresso e Executivo – pondo fim à execução automática das emendas de comissão – foi um raro momento de recomposição institucional, mediado pelo Judiciário.
Mas o fortalecimento do STF também levanta dilemas. Se, por um lado, sua atuação protegeu o Estado de Direito diante de impulsos autoritários, por outro, há críticas sobre excessos e interferências em prerrogativas dos demais Poderes. A “supremocracia”, no dizer de Oscar Vilhena, passou a habitar o centro do debate institucional.
Um sistema disfuncional, sem responsabilização
O resultado dessa metamorfose silenciosa é um sistema disfuncional, em que o poder é difuso, mas a responsabilização é nula. O Parlamento distribui recursos públicos em larga escala, mas não responde pelas falhas da gestão. O Executivo é cobrado por resultados que já não controla. O STF é elogiado e atacado por exercer papéis que o sistema político abandonou. E o eleitor, atônito, não sabe mais a quem cobrar.
A pergunta que se impõe é: o Brasil precisa de um novo pacto institucional? A resposta talvez seja sim. Mas não basta mudar o nome do regime. Um semipresidencialismo real – como em Portugal ou na França – exige regras claras, partidos programáticos e clareza na relação entre confiança parlamentar e Poder Executivo.
O que temos hoje é um semipresidencialismo informal, opaco, disfuncional e desigual. Um modelo em que o poder de decisão foi redistribuído, mas a responsabilidade política evaporou. Em nome da governabilidade, criamos um sistema em que todos mandam – mas ninguém governa.
Para onde vamos?
É possível corrigir o rumo sem ruptura institucional. Isso exige medidas como:
- reequilibrar o orçamento, restituindo ao Executivo a capacidade de planejamento;
- regulamentar as emendas parlamentares com critérios técnicos e transparência;
- exigir responsabilidade política de quem detém o poder real, inclusive líderes do Congresso;
- resgatar a centralidade da coordenação governamental, sem abrir mão do controle democrático.
Caso contrário, o país permanecerá sob um arranjo em que os Três Poderes atuam simultaneamente como governo e oposição, e a sociedade como refém de um jogo institucional que ela não compreende, não controla e não sanciona.