“Há décadas em que nada acontece e há semanas em que décadas acontecem”, disse Vladimir Lênin, um dos principais líderes da Revolução Russa. Essa frase define bem o momento atual pelo qual passa o Brasil e o governo federal, que em poucas semanas recebeu dois “presentes”. Se bem utilizados, podem representar o impulso necessário para que o país mude os rumos da sua política econômica.
O primeiro “presente”, já discutido aqui no último texto desta coluna, foi a derrubada pelo Congresso do decreto presidencial que aumentava as alíquotas do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF). Isso permitiu ao governo criar um novo “inimigo interno”, o Legislativo e os super-ricos, que, diga-se, são reais e devem ser enfrentados.
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Com o tarifaço anunciado pelo presidente americano Donald Trump, o governo ganha agora um inimigo externo que permite unir quase todo o povo brasileiro em torno da defesa da soberania nacional. Trump promete impor tarifas adicionais de 50% ao Brasil a partir de 1º de agosto como instrumento de pressão para que o ex-presidente Jair Bolsonaro seja anistiado e, assim, não seja condenado pelo Supremo Tribunal Federal (STF) por tentativa de golpe de Estado.
Levantamento da AP Exata divulgado na última sexta-feira (11/7) revelou que a maioria dos brasileiros nas redes sociais defende uma postura firme do país em relação às novas tarifas impostas pelos Estados Unidos. Segundo a pesquisa, 65% criticam a medida americana e demandam uma reação do governo brasileiro. Já 18% apoiam a decisão dos EUA, enquanto 17% se dizem neutros e pedem racionalidade.
Mais do que isso, Trump conseguiu até unir setores econômicos tradicionalmente ligados à extrema direita, como o agro e o extrativismo mineral, em torno da defesa dos interesses nacionais contra o imperialismo americano. Isso porque petróleo, ferro, aço, café e carne são os principais itens de exportação do Brasil para os EUA.
O presidente americano conseguiu ainda acabar com o discurso bolsonarista de patriotismo daqueles que vestiram a camisa (e o boné) de sua campanha, entre eles o governador de São Paulo, Tarcísio de Freitas (Republicanos), tido até então como o provável principal candidato de oposição a Lula nas eleições de 2026. São Paulo é o estado que mais exportou para os EUA em 2024, US$ 13,6 bilhões, o que representa 33,6% de tudo que foi vendido pelo Brasil aos Estados Unidos no ano passado.
São Paulo também é o estado que elegeu o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP), que tirou licença do seu mandato e está nos EUA desde março. Ele busca a aplicação de sanções ao Brasil para pressionar as autoridades a anistiarem seu pai, o que torna suas ações em solo americano contra os interesses nacionais ainda mais constrangedoras para as elites e cidadãos paulistas.
As mesmas elites que, conforme já escrito nesta coluna em abril passado, buscavam fazer o T de Tarcísio em 2026 e, se insistirem nessa opção, acabarão fazendo o T de “traidores” e de Trump.
O Brasil está diante, portanto, da melhor oportunidade das últimas décadas para colocar a discussão da soberania nacional no centro do debate político – não apenas com retórica, como tem sido feito nos últimos dias pelo governo Lula, mas com ações práticas que fortaleçam a independência econômica e política do país.
Para além do viés jurídico-formal, a soberania precisa ser vista principalmente sob aspectos econômicos e pode ser sintetizada como a capacidade de se estabelecer um projeto estratégico que aumente a capacidade produtiva e de inovação tecnológica de um país e que reduza a sua dependência externa da ordem internacional. Está ligada, portanto, diretamente à industrialização e ao investimento em tecnologia que visam a superação do subdesenvolvimento do país.
O Brasil e o mundo vivem há mais de 30 anos uma “pax neoliberal” em que o Consenso de Washington prevaleceu estabelecendo aos países em desenvolvimento o desmonte das políticas estatais com privatizações e destruição de direitos e de políticas públicas de caráter social. Agora as ações imperialistas de Trump dão uma excelente oportunidade para o Brasil discutir o fim do teto de gastos e do arcabouço fiscal que impedem o desenvolvimento e que o país se torne soberano de fato.
Para isso, entretanto, é preciso uma liderança que possua visão estratégica, coragem e capacidade de enfrentar conflitos, algo que até então não tem sido as características do presidente Lula, um conciliador por excelência que governa à reboque do Congresso e do mercado.
Lula e o governo irão enfrentar os desafios necessários para promover a soberania nacional de fato? Se observamos a história até então, a resposta é “não” porque falta vontade de enfrentar os reais problemas do país e visão estratégica de longo prazo para ambos. Não à toa o PT acaba de eleger para sua presidência Edinho Silva, ex-prefeito de Araraquara, que representa a ala mais moderada, para não dizer à direita do partido, que defende alianças com o centrão e ainda mais submissão ao “toma lá, dá cá” do fisiologismo político nacional.
A própria essência da ideologia lulista é social-liberal, o que significa dizer que há uma subordinação da pauta social aos interesses do mercado. Na prática, isso quer dizer que o governo não deverá tocar no ponto central necessário para o desenvolvimento do país, que passa pelo fim do arcabouço fiscal e do teto de gastos que impedem mais investimentos estatais.
Com a derrubada do decreto do IOF pelo Congresso e o tarifaço de Trump, o governo parece ter começado a mudar essa prática tradicional de dialogar apenas com as instituições deixando o povo de lado.
Essa mudança de rumos, porém, precisa ser efetivada não apenas no campo da retórica, mas na prática com ações concretas que realmente mudem o sentido da política econômica nacional. Sem isso, os discursos nacionalistas se perderão ao vento e mais uma vez o país perderá a oportunidade de debater e resolver seus problemas estruturais históricos.