A judicialização dos tratamentos para casos de Transtorno do Espectro Autista (TEA) na saúde suplementar não para de crescer. Os dados provam isso: entre 2020 e 2024, as reclamações à ANS relacionadas a negativas de cobertura para terapias de TEA saltaram mais de dez vezes. Nos tribunais, especialmente em estados como São Paulo, ações contra planos de saúde com esse foco já representam mais da metade das demandas de saúde infantil.
Mas o que explica essa escalada? Não se trata apenas de um aumento no número de diagnósticos, embora isso também esteja acontecendo. O cerne da questão está nas lacunas regulatórias, estruturais, terapêuticas e formativas que comprometem o acesso, a qualidade e a transparência das intervenções oferecidas às pessoas com TEA.
Com notícias da Anvisa e da ANS, o JOTA PRO Saúde entrega previsibilidade e transparência para empresas do setor
Um estudo recente que produzimos no Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (IESS) apresenta esse diagnóstico e oferece subsídios para um debate sério.
Apesar de avanços regulatórios, como a RN 539/2022 da ANS, que ampliou o escopo de cobertura obrigatória para tratamentos de TEA, persistem falhas que desaguam no Judiciário:
- Coberturas garantidas, mas pouco claras: a norma não exige comprovação científica de eficácia para obrigatoriedade de cobertura. Isso abre espaço para a prescrição (e posterior cobrança judicial) de terapias sem respaldo científico, aumentando os custos sem necessariamente trazer melhores resultados;
- Excesso de prescrições intensivas, pouca personalização: recomendações generalizadas de até 40 horas semanais de terapia desconsideram a singularidade de cada paciente. A literatura científica mais recente, como a meta-análise de Sandbank et al. (2024), mostra que mais horas nem sempre equivalem a melhores desfechos;
- Profissionais especializados em falta: há um desequilíbrio preocupante na formação dos profissionais que atuam com TEA. Enquanto cursos como Psicologia registram milhares de formandos, áreas cruciais como Fonoaudiologia e Terapia Ocupacional seguem com déficit. Isso limita a implementação de abordagens baseadas em evidência (PBEs) e a qualidade dos atendimentos; e
- Falta de padronização e fiscalização: o rápido crescimento do setor atraiu prestadores com níveis diversos de capacitação e compromisso. Sem auditoria sistemática e critérios de qualidade mínimos definidos, crescem os riscos de desperdício, fraudes e tratamentos ineficazes.
Nesse cenário, se desenha em uma situação bastante crítica. Dados da Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge) indicam que os custos com tratamentos de autismo já superaram os gastos com câncer no total das despesas dos planos. Os tratamentos para TEA e outros transtornos do neurodesenvolvimento passaram a representar 9% do custo médico total das operadoras, contra 8,7% relacionados à oncologia.
Conforme aponta o nosso estudo, o preenchimento das lacunas é um desafio triplo. Para os pacientes e suas famílias, que muitas vezes precisam recorrer à Justiça para garantir direitos; para as operadoras de saúde, que enfrentam pressões econômicas crescentes e insegurança jurídica; e para o sistema como um todo, cuja sustentabilidade está em jogo.
O que fazer?
Propomos caminhos para esse preenchimento:
- Adoção obrigatória de Práticas Baseadas em Evidência (PBEs): tanto na regulação quanto nas diretrizes clínicas, é necessário priorizar terapias com eficácia comprovada e reorientar a lógica da cobertura para a efetividade, não para a intensidade das intervenções;
- Formação e valorização de profissionais especializados: é urgente incentivar a qualificação em áreas como ABA, fonoaudiologia e terapia ocupacional. A criação de padrões mínimos de formação e certificação seria um primeiro passo;
- Modelos de remuneração por qualidade e desfechos: o atual modelo de pagamento por hora favorece volume, não resultados. A adoção de sistemas que premiem qualidade, continuidade do cuidado e evolução do paciente pode alinhar interesses entre operadoras, prestadores e usuários; e
- Regulação mais clara, fiscalização mais presente: operadoras precisam de segurança jurídica e critérios objetivos para operar. A regulação, por sua vez, deve ser mais proativa na definição do que é cobertura obrigatória, como monitorar resultados e coibir práticas abusivas.
A judicialização envolvendo o TEA é um sintoma de desequilíbrios profundos, não um problema isolado. O nosso estudo mostra com clareza que só vamos superar esse cenário com mais ciência, mais planejamento e mais diálogo. Garantir o acesso a terapias eficazes e sustentáveis não deve depender de uma decisão judicial. Deve ser parte de um sistema de saúde suplementar comprometido com o valor real entregue ao paciente.