Uma pesquisa liderada pela Anis – Instituto de Bioética analisou como o sistema de justiça brasileiro investigou, processou, julgou e puniu casos de aborto (arts. 124 e 126 do Código Penal), no período de 2012 a 2022.
Infelizmente, os resultados da pesquisa evidenciam o que estudos anteriores e especialistas em saúde pública e direitos humanos já alertam: o uso do direito penal como resposta para criminalizar a uma necessidade de saúde se mostra ineficaz e tem efeitos colaterais perversos.
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Quando uma necessidade de saúde é controlada por políticas criminais, a proteção à saúde e ao bem-estar de meninas, mulheres e pessoas que gestam é ameaçada por práticas inquisitoriais, mesmo em espaços que deveriam ser de cuidados, como os serviços de saúde.
A pesquisa encontrou que praticamente metade das denúncias ou inquéritos com origem identificada se iniciaram a partir da quebra de sigilo profissional durante um atendimento em saúde. Por uma moralização persecutória do aborto, os profissionais de saúde ignoram o seu dever de cuidado.
No lugar do cuidado em saúde livre de estigma, julgamento e do dever de garantia de confidencialidade, profissionais de saúde operaram para investigar. Uma das consequências, é que o sistema de saúde passa a ser visto como um local de risco para as mulheres que necessitam de cuidados pós-aborto de emergência.
Os resultados evidenciam um padrão de violações sistemáticas de direitos humanos em decorrência da criminalização do aborto e corrobora com os achados de outros estudos sobre o tema. A pesquisa de 2022 liderada pelas professoras Fabiana Severi e Gislene dos Santos[1] já havia apontado como a criminalização do aborto no Brasil reproduz discriminações e viola direitos fundamentais, como por exemplo, o direito a um julgamento justo.
Há um longo percurso punitivo imposto às meninas e mulheres, mesmo nos casos em que não há condenação. O benefício da Suspensão Condicional do Processo (SCP) é, por exemplo, oferecido nesses casos como um caminho alternativo ao julgamento a ser realizado pelo Tribunal do Júri, sendo um exemplo de como o Judiciário tem operado nesta matéria.
A SCP é oferecida nos crimes de menor potencial ofensivo e tem sido aplicada nos casos de criminalização por aborto como um recurso para evitar um julgamento, mas que na prática significa a imposição de regras morais punitivas e de vigilância e controle social sobre as condutas das mulheres sobre os seus corpos.[2]
O estudo ainda evidencia que a mesma intensidade persecutória se manifesta igualmente na delegacia e no Judiciário. Os processos penais de criminalização das mulheres por aborto se movem sem observar o direito ao devido processo legal. Ou seja, estão baseados muitas vezes em provas ilícitas, sem materialidade que pudesse comprovar um suposto aborto provocado, ou ainda com o uso de confissões obtidas sob intimidação ou coação nos próprios estabelecimentos de saúde.
Além disso, em muitos documentos judiciais há discursos moralizantes que reproduzem estereótipos de gênero para justificar ou relativizar a violação de direitos fundamentais das mulheres criminalizadas. As mulheres são comumente descritas como “reprováveis”, “maléficas”, “frias” e com “elevado grau de torpeza”. As adjetivações, aliadas a outros descritores misóginos, foram utilizadas para influenciar as decisões judiciais, mesmo diante da falta de materialidade das acusações.
Apesar da escassa disponibilidade de dados sociodemográficos, há estudos anteriores no Rio de Janeiro[3] que demonstram a seletividade e o impacto discriminatório da lei penal que dão pistas de que a criminalização afeta, em sua maioria, meninas e mulheres em situação de vulnerabilização social; especialmente adolescentes[4] e mulheres negras, periféricas, responsáveis pelo cuidado de filhos, com vínculos de trabalho precários e atendidas pela Defensoria Pública. Se o aborto é um problema de saúde pública para todas as mulheres e pessoas que gestam, sabemos que impacta desproporcionalmente meninas e mulheres negras e periféricas.
Se nada disso parece assustador, a pesquisa ainda encontrou casos em que vítimas de violência sexual e aborto forçado foram perseguidas e ameaçadas por operadores do sistema de justiça. Foram ainda encontradas denúncias que partiram de integrantes de conselhos tutelares, que deveriam garantir direitos fundamentais de crianças e adolescentes. Há inclusive casos de violação do direito à privacidade com dados pessoais como nome, endereço e histórias de adolescentes expostas em documentos públicos.
Esperamos que os resultados desta pesquisa se somem a um conjunto já existente de evidências consolidadas sobre os efeitos do uso discriminatório da lei penal do aborto para perpetuar violações sistemáticas de direitos reprodutivos de meninas e mulheres. O cuidado em saúde nas emergências obstétricas deve estar ancorado em políticas públicas baseadas em evidências, que coloquem no centro a necessidade reprodutiva de mulheres, meninas e todas as pessoas.
A Suprema Corte foi convocada à responder sobre a violação de direitos fundamentais, como a ADPF 442 que pede a descriminalização do aborto até a 12a semana; e a ADPF 1207, que busca ampliar os cuidados ao aborto legal, de forma que outros profissionais de saúde, ou a própria mulher possam realizar o procedimento no primeiro trimestre, assim como recomendado pela Organização Mundial da Saúde.
O tempo da vida das mulheres importa e é agora. O cuidado para o aborto seguro salva vidas e não pode ser tratado como crime para punir ou castigar, mas sim como uma questão de saúde pública e direitos humanos, para cuidar, proteger e reduzir danos.
[1] Disponível em: https://cfj.org/report/abortion-in-brazil-substantive-and-procedural-flaws-in-the-criminalization-ofwomen/
[2] A pesquisa de mestrado de Gabriela Silva Reis aprofunda os achados do estudo de Fabiana Severi e Gislene Santos ao analisar os estereótipos de gênero em processos de criminalização por autoaborto com suspensão condicional. Disponível em: https://www.even3.com.br/anais/xiii-eped/853502-analise-de-estereotipos-de-genero-em-processos-de-autoaborto-com-suspensao-condicional/
[3] Ipas e ISER (2014), “Criminalização das Jovens pela Prática de Aborto: Análise do Sistema de Segurança Pública e do Sistema de Justiça do Rio de Janeiro”, https://www.iser.org.br/wp-content/uploads/2013/11/relatorio-ISER-Ipas-Final-15-04-14.pdf
[4] Galli B, Reflexiones sobre el estigma social y la violencia institucional en procesos judiciales de mujeres y adolescentes “culpables” de aborto en el estado de Río de Janeiro, Capítulo 12. El aborto en América Latina / Paola Bergallo.- 1ª ed. Ciudad Autónoma de Buenos Aires: Siglo XXI Editores Argentina, 2018, Disponível em: https://clacaidigital.info/bitstream/handle/123456789/2364/67.%20el%20aborto%20en%20america%20latina.pdf?sequence=1&isAllowed=y