Degeneração da ‘marca’ democracia
Em ciência política, o estudo das ditaduras e regimes autoritários envolve conceitos como personalismo, autoritarismo institucional e totalitarismo. No personalismo, o poder se concentra na figura de um líder carismático ou temido. No autoritarismo institucional, instituições como o Exército ou um partido único dominam o Estado. No totalitarismo, o regime busca controlar todos os aspectos da vida social, econômica e cultural.
Esses modelos, embora distintos, compartilham traços semelhantes: a supressão de liberdades civis, a ausência de alternância de poder e a fragilidade ou inexistência de freios e contrapesos. Em geral, a adoção de regimes autoritários leva a indicadores econômicos e sociais mais pobres, com impacto direto na qualidade de vida da população e no aumento da desigualdade.
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Em oposição a esses regimes falamos em democracia. Contudo, o termo, outrora carregado de força mobilizadora, tornou-se uma “buzz word”: um rótulo usado para impressionar, mas esvaziado de significado. Correntes rivais se apresentam como defensoras da democracia e se acusam mutuamente de autoritarismo.
Fazendo um paralelo com marcas de consumo, a “marca” democracia degenerou e perdeu muito de seu conteúdo semântico. Assim como quem pede no mercado “Bombril” pode receber qualquer palha de aço, o eleitor que pede democracia na urna corre o risco de receber em troca regimes muito diferentes, incluindo autocracias, anarquias ou ditaduras.
Todos os agentes políticos se autodefinem como democratas. Ao mesmo tempo, todos são tachados pelos adversários de proto ditadores e tiranetes. A prisão de um líder, o resultado de uma eleição e a criação de uma entidade internacional (o CPAC ou o Foro de São Paulo) pode ser apresentada, tanto como um ato de defesa ou como um ato de ataque à democracia, dependendo das pessoas envolvidas.
Em tempos de polarização, golpes parlamentares, manipulação e contestação de resultados eleitorais, a classificação de regimes torna-se ainda mais difícil. Narrativas opostas moldam a percepção do que é democrático e a confiança nas instituições, em especial eleitorais, é constantemente testada.
Nesse ambiente, a população corre o risco de confundir medidas legítimas com autoritarismo, assim como pode relativizar atos autoritários como meros movimentos dentro de um “jogo político”. O ruído narrativo alimenta a desorientação coletiva.
Tentativa de golpe: uma tradição nacional
A posição do Brasil é especialmente interessante para entender esse problema. Desde a Proclamação da República, o Brasil sofreu cinco golpes de Estado consumados: a própria proclamação em 1889, o 3 de novembro em 1891, a Revolução de 1930, o Estado Novo em 1937, a deposição de Vargas em 1945 e o golpe de 1964. O último resultou em ditadura de mais de duas décadas.
Além de rupturas consumadas, ocorreram ao menos oito tentativas mal-sucedidas: Revolta da Armada da primeira república, levante do Forte de Copacabana, Coluna Prestes, Intentona Comunista, integralistas de 1938, dentre tantas outras.
Em média, desde que deixou de ser monarquia, o país enfrentou um golpe ou tentativa de ruptura a cada dez anos em média. Esses episódios revelam a recorrência das ameaças e mostram que o risco de golpe não é delírio: é uma tradição nacional, que mina a confiança nas instituições.
No entanto, nos últimos 40 anos essa tendência vem sendo revertida. Desde 15 de janeiro de 1985, com a eleição de Tancredo Neves, conseguimos manter quatro décadas de estabilidade democrática, o maior período de nossa história. Nesse interim, o Brasil realizou nove eleições presidenciais, dez para a Câmara Federal e dez para o Senado. Foram ainda 297 eleições para governadores e assembleias estaduais, além de 45.066 prefeitos e 446 mil vereadores escolhidos em nove pleitos municipais.
As urnas eletrônicas estão presentes desde 1996. Em 2000, todos os municípios foram informatizados com a primeira eleição 100% eletrônica. O comparecimento eleitoral oscila entre 75% e 79% em razão do voto obrigatório. Esse engajamento revela uma cidadania eleitoral sólida, distinta de países em que a abstenção mina a legitimidade democrática. Eleições periódicas, sufrágio universal e alternância de poder marcaram esse período inédito.
Os resultados eleitorais confirmam uma alternância constante. Oposição e situação se revezaram na presidência, no controle das casas legislativas e em governos estaduais, evidenciando pluralismo competitivo. As eleições de 2022 são exemplo disso. Um candidato de oposição conquistou a Presidência, enquanto partidos da então situação dominaram a Câmara, o Senado e governos de estados estratégicos, incluindo São Paulo, Minas Gerais e toda a região Sul.
O financiamento público também ilustra a dinâmica institucional. O Fundo Partidário, regulado pela Lei dos Partidos Políticos e por resoluções do TSE, superará R$ 1,2 bilhão em 2025. A distribuição segue critérios legais: 5% entregues igualmente a todos os partidos e 95% proporcional aos votos para a Câmara. Com isso, partidos com maior bancada recebem mais recursos. Em 2024, o PL, de oposição, foi o maior beneficiário, com R$ 150 milhões. O PT, partido da situação, ficou em segundo lugar.
Esse conjunto da dados aponta para uma democracia efetiva, operacional e perene do ponto de vista formal. A questão é se materialmente esses ciclos eleitorais produziram resultados sociais relevantes.
Democracia e ganhos sociais
Como consequência desse deslocamento do eixo de poder para o povo, esperava-se um avanço correspondente nas áreas sociais. Quando analisamos os indicadores socioeconômicos do país, um dos fundamentos da democracia real, verifica-se que esse avanço ocorreu, mas não na proporção e na velocidade esperadas.
Nos anos 1970, o acesso ao saneamento era muito restrito. Menos de 40% da população urbana tinha acesso à coleta de esgoto e nas áreas rurais esse número era ainda menor. Nos anos 2000, programas sociais como o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC) deram um fôlego adicional, mas ainda em 2010 a coleta de esgoto atingia apenas metade dos brasileiros.
O Marco Legal do Saneamento de 2020 estabeleceu metas ambiciosas (99% da população com água potável e 90% com coleta e tratamento de esgoto até 2033). A expansão aconteceu, mas de forma desigual: o Sudeste se aproximou a universalização enquanto Norte e Nordeste ficam abaixo da média. Hoje, 85% da população tem acesso a água potável e 60% a coleta de esgoto.
No que se refere à educação, a taxa de analfabetismo entre adultos em 1970 era de 30%. Hoje, com políticas como o Fundeb, o analfabetismo caiu para menos de 6% na população acima de 15 anos, concentrada em pessoas idosas no Nordeste. A taxa de alfabetização de jovens entre 15 e 24 anos supera 98%, o que mostra avanços.
Por fim, a violência policial e a desigualdade econômica permanecem elevadas e, infelizmente, com pouca evolução. A letalidade policial continua uma das mais altas do mundo, acima de 6.000 mortes por ano, sem sinais de queda significativa. Em 2016 foram perto de 4.000.
Em termos de desigualdade, o Brasil apresentava em 1970 índice Gini de 0,60, muito elevado, estando entre os 10 países mais desiguais do mundo. Nos últimos anos, o índice oscilou entre 0,53 e 0,54, uma queda pequena. O principal fator de melhora do índice Gini foi o controle da inflação com o Plano Real.
O que nossa história recente nos mostra é que a adoção de um regime democrático produziu avanços significativos, porém irregulares. Algumas regiões geográficas avançaram mais do que outras e algumas áreas sociais evoluíram de forma mais consolidada que outras. Daí a dificuldade de se avaliar de forma categórica a qualidade e extensão da democracia de um país, em especial do Brasil.
Brasil nos indicadores gerais de democracia
A existência de democracia não é variável binária. Ela não se define por um simples “sim” ou “não”. Regimes variam em intensidade democrática, oscilando no tempo e no espaço, compondo um espectro que vai de sistemas participativos a estruturas autoritárias.
É nesse ponto que o uso de indicadores e subindicadores se torna crucial. Analisar o Brasil por essas métricas objetivas abre nossos olhos e permite distinguir com clareza os pontos fortes (como a estabilidade eleitoral e a alternância de poder) dos pontos fracos, que se concentram na desigualdade, no acesso à justiça e nos direitos sociais ainda não garantidos.
Essa metodologia também ajuda a fixar o conceito de democracia em bases racionais. Ao invés de slogans ou narrativas passionais, a avaliação baseada em indicadores mostra de forma menos apaixonada o que avançou e o que permanece deficitário. Assim, a discussão pública se qualifica e a própria democracia se fortalece.
Não por outra razão, o Brasil aparece em posições intermediárias em diversos índices internacionais de mensuração democrática, refletindo essas contradições. No Freedom House, por exemplo, o país alcança 72 pontos e é classificado como “parcialmente livre”.
No Democracy Index da Economist Intelligence Unit, o Brasil ocupa a 57ª posição entre 167 países, com nota 6,49, como “democracia imperfeita”. Já no Polity IV, obtém 8 pontos em 10, sendo reconhecido como democracia, embora distante da pontuação máxima.
O que a história recente do Brasil mostra é bastante claro: o caminho da democracia traz enormes ganhos para o padrão de vida da população. Estamos hoje numa posição muito melhor do que estávamos em 1970 em grande parte como resultado das escolhas institucionais que fizemos: eleições livres, alternância de poder e participação popular nas escolhas.
A história também mostra que esse caminho não é livre de falhas. Muitos indicadores sociais relevantes ainda não reagiram e alguns até pioraram, o que torna compreensível a frustração das pessoas em geral. Essa frustração, no entanto, não pode nos cegar para os enormes ganhos obtidos nesses 40 anos, turvando nosso juízo a respeito da imprescindibilidade da democracia.
A restauração do valor da “marca” democracia depende do reconhecimento desses ganhos, bem como da constatação de que o regime está operacional no país desde 1985 com significativo sucesso. Sucesso que, a despeito das dificuldades encontradas, não é meramente formal, ou seja, não sendo uma mera troca de governo sem efeitos práticos, tendo atingido áreas da vida social relevantes, com ganhos muito significativos.
Essa restauração depende também de ajustes no processo democrático para adequação à realidade do século 21. Isso passa pelo aumento no uso de tecnologia em diversas frentes. Por exemplo, construir e divulgar indicadores de desempenho democrático; realizar consultas mais frequentes à população sobre assuntos de seu interesse direito; aperfeiçoar os mecanismos de controle e fiscalização do uso da verba pública; e redefinir o processo legislativo, com adoção de política dirigida por dados e experimentação regulatória em larga escala.

