O termo “Rubicão” remonta a um pequeno rio no norte da Itália que, em 49 a.C., foi atravessado por Julio César, em desafio direto ao Senado romano. A ação, acompanhada da célebre frase “Alea jacta est” (a sorte está lançada), significava que não havia mais retorno: tratava-se de um ato de ruptura que só poderia levar à vitória ou à ruína. Desde então, “cruzar o Rubicão” passou a simbolizar o ponto sem volta em qualquer decisão arriscada ou transformadora, quando se ultrapassa um limite após o qual já não é possível recuar.
Pelo modelo do Hype Cycle da Gartner, que nada mais é do que uma curva teórica que descreve como novas tecnologias passam pelo ciclo de entusiasmo, frustração e, eventualmente, adoção prática, a inteligência artificial, a par das esperadas desconfianças, tem inegavelmente se aproximado do último estágio, chamado de Planalto da Produtividade. Esse ponto é atingido quando a tecnologia passa a entregar valor concreto.
Para o Direito, as implicações se dão em duas vertentes.
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De um lado, o Direito na IA — o Direito como regulador e governador de como a inteligência artificial deve ser utilizada pela sociedade. Perpassa a utilização da IA de forma horizontal pelo tecido social e pelos atores econômicos. Envolve e discute temas como transparência, mitigação de vieses, responsabilidade civil, conformidade regulatória e segurança jurídica. O tema é conhecido como governança de IA ou IA responsável.
De outro lado, a IA no Direito — a tecnologia como aliada do advogado: automação de tarefas repetitivas, análise avançada de contratos, suporte em compliance e due diligences, resultando na reconfiguração do papel do profissional para atividades de maior valor estratégico e criativo. É, em apertado resumo, aquilo que poderá ser produzido pela soma dos softwares legado (repositório de dados e auxílio em processos internos que conhecemos desde a década de 1990) com a IA voltada à emulação, generativa ou analítica, de serviços jurídicos (analytics, assistentes e agentes).
Nos dois casos, o destino é consumado e simples: nos próximos cinco anos, o Direito vai se modificar em velocidade superior ao que se viu nos últimos 30 anos. Os sinais estão aí para quem quiser ver. É uma revolução que já está em curso, silenciosa para a maioria, é verdade. Nesse contexto, assim como César se viu obrigado a enfrentar o Senado romano, nos vemos diante da certeza que teremos que nos adaptar a esse novo patamar de produtividade na história humana e, consequentemente, em nossas atividades profissionais.
No que diz respeito à tecnologia em si, Eric Schmidt, executivo chefe do Google e presidente da Alphabet entre 2001 e 2015, fez a seguinte declaração em entrevista concedida ao TED em abril deste ano: “AI is widely underhyped” – algo como “a IA é amplamente subestimada”.
Schmidt defende sua tese de “minimização injustificada” com números potentes. Para começar, ele nem fala mais tanto em inteligência artificial. Prefere empregar o termo “computação em escala”. Como se sabe, o deep learning, raiz tecnológica dessa nova IA, depende, para sua evolução, de volumes cada vez maiores de processamento (compute) e dados. Isso significa que mesmo com ganhos de eficiência algorítmicos, a IA é faminta por infraestrutura (hardware).
Para se ter a dimensão da fome da IA e de suas consequências, Schmidt informa que, somente nos EUA, há projetos em curso para nove data centers dedicados à IA com projeção de consumo energético de pelo menos 10 gigawatts. Se pensarmos que uma planta nuclear média produz apenas 1 gigawatt, têm-se a real dimensão do colosso que a IA, apenas no que se refere à sua infraestrutura, será para o mundo nos próximos meses.
O que isso significa? A analogia com o passado é a melhor forma de colocar em perspectiva. O deep learning e a nova infraestrutura que lhe dá suporte estão para a era da IA assim como a máquina a vapor esteve para a Revolução Industrial. Outra analogia possível é comparar esses data centers com todo o esforço de interligação de computadores que resultaram na criação da internet. Parte da infraestrutura, portanto, está posta e continua se desenvolvendo a passos largos. As aplicações vencedoras virão a reboque. Aliás, o fato de ainda não termos muitas aplicações vencedoras é o que ainda gera desconfiança. É uma situação passageira.
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Os números são estrondosos. A Sequoia Capital também não fala mais em IA. Sua expressão de preferência é Revolução Cognitiva. Para a prestigiada firma de investimentos em inovação do Vale do Silício, a oportunidade de receitas de serviços baseados em IA nos próximos anos é de US$ 10 trilhões.
E por que não há mais ação concreta por todos nós? Por que advogados, juízes, promotores, DPOs, especialistas em compliance, auditores, sócios de escritórios e tantos outros que serão afetados ainda não seguiram o exemplo de César?
Porque é da natureza humana que a inovação nasça cercada de desconfiança, mas acabe sendo abraçada. O fio condutor dessa trajetória se materializa em uma lei que nada tem a ver com o Direito. É a lei da Difusão das Inovações. Ela indica que sempre existirá uma curva de adoção. Esse padrão foi teorizado por Everett Rogers na década de 1960 e identifica que a população está dividida em innovators (2,5%), early adopters (13,5%), early majority (34%), late majority (34%) e laggards (16%).
É uma questão de pré-disposição à mudança. Tem gente que simplesmente é mais ousada e futurista e tem gente que espera para ver como a banda vai tocar. Exemplos de falas de integrantes desse último grupo são marcantes ao longo da história:
- a) computador pessoal: “Não há razão para alguém querer um computador em casa”, Ken Olsen, 1997;
- b) internet: “O crescimento da internet vai desacelerar drasticamente, porque a maioria das pessoas não tem interesse em acessá-la”, Clifford Stoll, 1995;
- c) inteligência artificial: “Xadrez é uma tarefa que computadores nunca vão conseguir dominar”, vários especialistas desde os anos 1960.
Quem se vê pré-disposto na área jurídica o é porque é capaz de perceber que é a primeira vez que tecnologia e Direito se influenciam mutuamente nesse nível: Direito na IA e IA no Direito. São dois lados de uma mesma moeda — regular e utilizar. Não chegam a ser complementares, mas se beneficiam de know-how unificado.
No primeiro caso, caberá ao operador do Direito atuar em todos os setores da economia para indicar como esses devem atuar para fazer uso da IA de forma segura, assim como para dirimir conflitos que surjam da novidade.
No segundo caso, é missão – de sobrevivência, eu diria – principalmente do advogado e dos tribunais se assegurarem que fazem uso de tecnologia indispensável para o ganho de produtividade em suas atividades.
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Profissionais que dominem a IA internamente, em sua lógica e riscos, estarão bem posicionados para atuar em ambas as vertentes. A tendência é que para isso estejam dotados de espírito inovador.
Atravessado o Rubicão, seja a partir do espírito de inovação, seja pela inércia posterior, calculo pelo menos uma década de muito trabalho pela frente. Tanto regularemos robôs para bom uso pela sociedade, tanto colaboraremos com seu desenvolvimento a serviço do Direito e da administração da justiça. Convido a todos que coloquem suas mãos e mentes biológicas à obra!