É possível aderir a uma ata de registro de preços que nunca foi aberta a outros órgãos ou entidades?
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A dúvida não é retórica. Em tempos de hiperconveniência administrativa e soluções prontas para problemas mal diagnosticados, a adesão a atas de registro de preços (ARP) continua sendo um expediente sedutor – e, por vezes, mal compreendido.
Já alertei, em artigo anterior,[1] para os riscos da adesão indiscriminada como atalho à margem do planejamento institucional. Agora, é preciso dar um passo adiante: mesmo quando vantajosa, a adesão só é juridicamente possível se houver sido franqueada por um procedimento prévio público – o IRP.
Com a vigência da Lei nº 14.133/2021, muitos entes públicos enxergaram no art. 86 a consagração do “carona como regra”. Mas a leitura atenta da norma revela exatamente o contrário: a possibilidade de adesão não é automática nem irrestrita – ela está condicionada à existência de um caminho procedimental prévio, público e formalmente aberto. E esse caminho atende por um nome específico: IRP – o procedimento de intenção de registro de preços.
A ideia é simples, embora frequentemente ignorada: sem IRP, não há ata compartilhável. E, se não há compartilhamento, tampouco pode haver adesão. O que resta é uma ata personalíssima, voltada ao atendimento exclusivo do órgão que a gerenciou.
Nesses casos, toda tentativa de adesão posterior – por mais vantajosa que possa parecer – nasce marcada pela ausência de base legal. Não há carona onde não houve convite.
A Lei nº 14.133/2021 inova ao detalhar os pressupostos para o uso do sistema de registro de preços. Em seu art. 86, caput, estabelece que o órgão ou entidade gerenciadora deverá, na fase preparatória, realizar procedimento público de intenção de registro de preços, com o objetivo de possibilitar, pelo prazo mínimo de 8 dias úteis, a participação de outros órgãos ou entidades e de determinar a estimativa total de quantidades da contratação. Trata-se de um rito voltado à formação de uma ata pública, cooperativa e escalável.
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O § 1º do artigo, porém, estabelece uma exceção: quando o órgão for o único contratante, o IRP poderá ser dispensado. A consequência jurídica, nesse caso, não é apenas processual, mas estrutural: a ata formada será destinada exclusivamente ao gerenciador, não se abrindo a adesões futuras.
Já o § 2º prevê a possibilidade de adesão de não participantes, mas o faz expressamente condicionado à realização do procedimento previsto no caput do art. 86.
Portanto, a lógica do artigo é indissociável de sua sequência normativa: (i) o IRP abre a ata para adesão; (ii) sem IRP, a ata é fechada, exclusiva do órgão ou entidade promotora da licitação; e (iii) a carona só é juridicamente possível se o rito do IRP tiver sido cumprido.
Essa interpretação é reforçada não apenas pela literalidade da lei, mas por uma compreensão sistêmica da finalidade do registro de preços. O IRP cumpre funções essenciais: dá publicidade à intenção de contratar, permite que outros entes se manifestem e participem do planejamento e dimensiona corretamente a estimativa global de demanda.
Sem esse rito, a ata não gera efeitos externos legítimos. Ela não se comunica com o restante da Administração Pública. É, por assim dizer, um contrato moldado sob medida, sem abertura institucional.
É nesse ponto que falha boa parte das práticas recentes de adesão: toma-se uma ata que jamais foi aberta a terceiros – seja porque não houve IRP, seja porque o processo foi deliberadamente silencioso – e tenta-se justificar a carona com base apenas em vantajosidade e aceitação do fornecedor.
Mas o vício não está no final do processo, e sim no seu início. A ausência do IRP impede que a ata tenha caráter expansível, e essa falta de origem não se corrige com justificativas posteriores.
A jurisprudência do controle externo, mesmo anterior à nova lei, já alertava para os riscos desse atalho. O Tribunal de Contas da União sempre vinculou a adesão à demonstração de planejamento, vantajosidade e à existência de elementos mínimos de publicidade prévia.[2]
No âmbito do Tribunal de Contas do Estado de São Paulo, a Súmula nº 33 foi ainda mais incisiva: vedou a adesão por carona salvo quando expressamente prevista em lei federal.
A nova legislação amplia as hipóteses, mas não suprime o rito necessário. Ao contrário: condiciona a adesão à sua realização. Isso tem implicações práticas imediatas para os órgãos públicos.
Não basta avaliar a vantajosidade da ARP ou a aceitação do fornecedor. É preciso verificar, documentalmente, se houve IRP por parte do órgão gerenciador. E, se não houve, a ata não comporta adesão. Aceitar o contrário seria permitir que o art. 86 fosse lido ao avesso: como autorização incondicional, e não como rito estruturante.
Ao fim, voltamos à pergunta que abriu este texto: é possível aderir a uma ata que nunca foi aberta?
A resposta, à luz da nova Lei de Licitações, só pode ser negativa. Sem IRP, não há caminho aberto para a adesão. O que resta é uma tentativa de carona num veículo que sequer anunciou seu destino – e que, portanto, não deveria levar ninguém além do próprio motorista.
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[1] Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/nova-lei-velhos-atalhos-os-riscos-da-adesao-indiscriminada-as-atas-de-registro-de-precos. Acesso em 09 Out. 2025.
[2] Por todos, vide Acórdãos 1.794/2023-1ª C, 2.822/2021-Plenário e 8.340/2018-2ª Câmara.

