O crime organizado brasileiro tem uma fonte de receita constante, lucrativa e de baixa exposição policial: o comércio ilegal de cigarros. De acordo com um estudo inédito da Fundação Getulio Vargas (FGV Conhecimento), patrocinado pela Associação Brasileira da Indústria do Fumo (Abifumo) e obtido pelo JOTA, esse mercado movimenta R$ 10,2 bilhões por ano — o equivalente a cerca de 7% de todo o faturamento das organizações criminosas no país.
De acordo com o estudo, assinado pelos pesquisadores Camila Sena; Camila Lannes; Ricardo Simonsen e Renan Peri, mais do que um problema de contrabando ou evasão fiscal, o cigarro ilegal se consolidou como uma das principais bases financeiras da economia do crime. O relatório afirma que esse comércio paralelo não apenas causa perdas bilionárias aos cofres públicos, mas também impulsiona diretamente a violência em todo o território nacional.
Segundo Pieri, a persistência dessa economia paralela está ligada a fatores estruturais e de longo prazo, como a tributação elevada e as fragilidades de fiscalização nas fronteiras e nos centros urbanos. “O cigarro ilegal é um fenômeno que combina oferta abundante e demanda constante. Mesmo com avanços pontuais na repressão, há incentivos econômicos que mantêm o problema vivo”, explica o pesquisador.
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A FGV constatou que cada aumento de 1 ponto percentual na taxa de ilegalidade do mercado de cigarros está estatisticamente associado a 239 novos homicídios dolosos por ano, além de 892 ocorrências de tráfico de drogas, 629 apreensões de armas de fogo, 339 roubos de carga, 2.868 roubos de veículos, 30 latrocínios e 9 roubos a instituições financeiras.
“O cigarro ilegal é a vaca leiteira do crime”, afirmou ao JOTA Edson Vismona, presidente do Fórum Nacional Contra a Pirataria e a Ilegalidade (FNCP). “Ele dá liquidez rápida, usa as mesmas rotas e estruturas de outros mercados ilícitos e financia drogas, armas e combustíveis contrabandeados. Quando ele é contido, a criminalidade cai.”
Para Renan Pieri, os resultados reforçam a ideia de que o cigarro ilegal é parte da engrenagem financeira que sustenta o crime organizado, e não apenas um subproduto dele. “Os dados mostram correlação clara entre a expansão do mercado ilegal e o aumento de crimes graves. O cigarro funciona como uma fonte de capital para organizações que atuam em outras frentes, como drogas, armas e combustíveis”, afirma.
Contrabando e falsificação
O levantamento indica que 24 pontos percentuais da ilegalidade vêm de contrabando, especialmente do Paraguai, e outros 8 p.p. correspondem a fábricas clandestinas e empresas devedoras contumazes que operam no Brasil sem recolher tributos. Essas estruturas atuam em polos estratégicos próximos à fronteira e ao interior paulista, fabricando produtos que imitam marcas legais e são vendidos abaixo do preço mínimo estabelecido pela Receita Federal.
A FGV descreve esse arranjo como um mercado híbrido, que combina produção irregular interna e importação ilícita transnacional. A operação é sustentada por logísticas profissionais, rotas bem definidas e uso intensivo de transporte rodoviário, aproveitando falhas de fiscalização e barreiras aduaneiras frágeis.
“É um fenômeno econômico criminoso”, diz Vismona. “As facções entenderam que o cigarro é um produto de massa, que dá retorno rápido e baixo risco. É crime com CNPJ, logística e gestão.”
Pieri acrescenta que as facções tratam o contrabando de forma empresarial, com divisão de funções, hierarquia e gestão de risco. “Há indícios de profissionalização nas estruturas criminosas, que passam a encarar o contrabando como uma operação comercial completa. Isso amplia a eficiência e dificulta o enfrentamento estatal”, observa o pesquisador.
Para elaborar o estudo, a FGV cruzou informações de diversas fontes oficiais: Sistema Nacional de Informações de Segurança Pública (Sinesp), Relatórios do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP), Receita Federal, Tesouro Nacional e pesquisa Ipec Pack-Swap 2024, que mede o tamanho do mercado ilegal por meio da coleta e auditoria de embalagens.
Com base nesses dados, a instituição aplicou modelos econométricos de efeitos fixos por estado (2019–2024), que identificam correlações robustas entre o avanço do mercado ilegal e a criminalidade violenta. Os pesquisadores alertam que as relações não indicam causalidade direta, mas revelam um padrão estatístico sólido: quanto maior a presença do cigarro ilegal, maior a incidência de crimes graves.
De acordo com Pieri, o estudo buscou oferecer evidências para embasar o debate público e aprimorar o entendimento sobre as conexões entre economia e segurança. “Nosso objetivo foi dimensionar o problema com base em dados concretos e trazer evidências empíricas para a discussão. O cigarro ilegal não é um fenômeno isolado, mas parte de uma rede econômica criminosa integrada”, afirma.

