O debate sobre o licenciamento de Standard Essential Patents (SEPs), as chamadas patentes essenciais a padrões, revela uma contradição persistente na atuação do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade).
Essas patentes protegem invenções indispensáveis à implementação de produtos e serviços amplamente utilizados, como celulares e dispositivos 5G. O desafio está em equilibrar o direito de exclusividade do titular com o acesso de outros desenvolvedores a essa tecnologia.
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Em julho de 2025, o Cade reconheceu que, embora as SEPs favoreçam a interoperabilidade e a inovação, também podem criar espaços para abusos. Entre as condutas problemáticas, a autarquia citou práticas como recusa de licenciar tecnologias essenciais (essential facilities), a cobrança de royalties excessivos após a adoção do padrão (hold-up), o acúmulo de royalties de diferentes detentores (royalty stacking), e o uso de litígios simulados (sham litigation) com o propósito exclusivo de excluir concorrentes.
Na teoria, trata-se de um avanço. Na prática, porém, o histórico do Cade revela uma dificuldade em definir até onde vai o direito de exclusividade e onde começa o abuso de poder econômico. Um caso envolvendo Motorola, Lenovo e Ericsson ilustra bem essa ambiguidade.
Em maio de 2024, as duas primeiras empresas acusaram a Ericsson de cobrar royalties abusivos sobre smartphones por tecnologia 5G. A Ericsson respondeu que as denunciantes violavam seus direitos ao recusar um acordo global de licenciamento nos termos da FRAND — compromisso que busca garantir condições justas e não discriminatórias.
Em dezembro, o Cade rejeitou um pedido de medida preventiva por não identificar indícios de conduta anticompetitiva. Meses depois, em abril de 2025, decidiu abrir inquérito administrativo para investigar possíveis práticas discriminatórias. O vai e vem do caso expôs, mais uma vez, a falta de um critério claro de atuação da autoridade antitruste diante de disputas envolvendo propriedade intelectual e concorrência.
Essa oscilação não é nova. Desde os anos 1990, o Cade alterna períodos de maior intervenção e fases de retração. Em 2010, a autarquia puniu empresas que ajuizavam ações repetitivas apenas para excluir concorrentes do mercado televisivo, reconhecendo o abuso do direito de ação. Em 2015, multou a farmacêutica Eli Lilly por tentar prolongar indevidamente a exclusividade de um medicamento contra o câncer de mama.
Mas, em 2018, no caso Anfape, que investigou montadoras por restringirem o mercado de autopeças com base em desenhos industriais, o Cade mudou de direção. Entendeu que os efeitos negativos da exclusividade eram “inerentes” ao direito de patente e que não caberia intervir. O resultado foi uma postura de deferência ao INPI e a outros órgãos reguladores, o que reduziu a margem de intervenção concorrencial.
O problema é que, ao tratar os efeitos anticompetitivos como naturais à exclusividade legal, o Cade acaba abrindo espaço para que direitos de propriedade intelectual se tornem barreiras estruturais à inovação. No caso das SEPs, o risco é ainda maior: quem controla uma tecnologia essencial pode determinar quem entra, e quem fica de fora, de todo um mercado. O titular passa a deter um poder que vai além do direito de exclusividade. Nessa situação, a ausência de intervenção concorrencial não preserva a inovação; ao contrário, pode sufocá-la.
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O recente esforço do Cade para discutir o tema é positivo. Mas se a autarquia quiser atuar de forma efetiva, precisará superar essa ambiguidade. Caso contrário, continuará oscilando entre a retórica da defesa da concorrência e a prática da autolimitação.
É necessário assumir que o equilíbrio entre propriedade intelectual e concorrência não é uma questão meramente formal, mas uma questão de política pública. E, nesse intervalo, a economia da inovação segue refém da incerteza, sem saber se o Estado brasileiro protegerá a livre concorrência ou continuará hesitando diante do poder concentrado que as patentes, em nome da inovação, acabam por legitimar.

