Conceituar termos jurídicos, contingentes por natureza, é atividade não raro atrelada a uma colisão de interesses econômicos e políticos. E isso não é necessariamente ruim, já que o direito é concebido a partir da política, espaço por excelência dos interesses contrapostos e do dissenso: as razões jurídicas contemplarão também componentes políticos e econômicos, em síntese. Mas nem toda conceituação gestada nesses termos será constitucionalmente legítima.
Tramita no Supremo Tribunal Federal a ADI 7862, em que se decidirá se a Nova Lei do Gás (Lei 14.134/2021), editada pelo Congresso Nacional, invadiu a competência exploratória dos Estados ao estabelecer novas hipóteses de aplicação do conceito de atividade de transporte de gás natural.
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Essa categorização é econômica e politicamente importante porque, das duas espécies de movimentação de gás natural – transporte e distribuição –, é apenas na atividade de transporte que reside a competência exploratória da União.
Portanto, quanto mais numerosas forem as hipóteses de gasodutos classificados como transporte, tanto melhor para os interesses federais; por outro lado, aos Estados interessa restringir ao máximo essa categoria e, logo, esse conceito, de modo a lhes permitir explorar uma gama maior de atividades no setor, sobretudo via concessões. Em se tratando de setor econômica e politicamente estratégico, as colisões de interesses tendem mesmo a se acentuar, como evidencia a ADI.
O dispositivo nela questionado é o art. 7º, VI, da Nova Lei do Gás, cujo texto prescreve que um gasoduto será considerado de transporte também se ostentar “características técnicas de diâmetro, pressão e extensão que superem limites estabelecidos em regulação da ANP”.
Até a Nova Lei do Gás, o conceito de gasodutos de transporte era associado a dois únicos critérios: a finalidade atribuída ao gasoduto e os limites geográficos por ele operados. Se se tratasse de atividade de interesse geral, a transcender os interesses meramente locais, ou se a operação ultrapassasse os limites territoriais de um estado, então teríamos uma atividade de transporte. Não sendo o caso de nenhuma dessas hipóteses, estaríamos diante de uma atividade de distribuição de gás natural, a atrair a competência exploratória dos estados.
Esses critérios não foram abandonados (ver, por todos, os incisos I e II do mesmo art. 7º da Lei 14.134/21, em que se fala em operações de fronteiras e interestaduais). A novidade está na previsão de que o conceito, com todos os seus efeitos jurídicos, também se aplicará quando preenchidos critérios estritamente técnicos, vinculados às dimensões do gasoduto, estabelecidos pela agência reguladora setorial: a lei parece presumir que há uma correlação lógica entre as dimensões técnicas do gasoduto e sua vinculação a interesses que transcendem o âmbito local.
Em outras palavras, ela presume que, se o gasoduto ultrapassar – em diâmetro, pressão e extensão – determinados limites, então eles só poderão ser gasodutos de transporte, por afetarem esses interesses gerais, para além dos interesses dos estados.
Duas ordens de questionamentos devem ser trazidas aqui.
A primeira delas volta-se a essa presumida correlação lógica entre as dimensões do gasoduto e sua vinculação a interesses nacionais, a atrair a exploração pela União. Essa correlação existe mesmo, de modo que é lógica e empiricamente impossível conceber um gasoduto com dimensões elevadas de diâmetro, pressão e extensão que, ainda assim, atenda apenas interesses locais?
O argumento, lançado pela própria ANP, é o de que as infraestruturas de transporte “são projetadas e operadas para atender um grande volume de gás natural e, em consequência, possuem maior pressão operacional, dutos de diâmetro e comprimento maiores, condizentes à sua atividade”, ao passo que as infraestruturas de distribuição, “no geral, movimentam um volume menor de gás natural e, consequentemente, possuem características de projeto e operação inferiores às infraestruturas de transporte” (Relatório AIR nº 2/2025, fl. 4).
Da constatação de que gasodutos de transporte apresentam elevadas dimensões de diâmetro, pressão e extensão não decorre a conclusão de que todo gasoduto com elevado diâmetro, pressão e extensão necessariamente envolverá o transporte de gás natural a outros estados e, logo, interesses gerais para além do estado originário.
Numa síntese com outros termos: não é porque todo gasoduto de interesse nacional tem consideráveis diâmetro, pressão e extensão, que todo gasoduto com elevadas dimensões desses atributos será de interesse nacional e operará em mais de um estado. Da constatação de que todo homem é um ser mortal não se pode derivar a conclusão de que todo ser mortal é um homem. E, tanto lógica como empiricamente, basta a demonstração de outros animais, igualmente mortais, para refutar a conjectura. Num caso como no outro, a correlação lógica inexiste.
É que a própria natureza desses conceitos parece estar inevitavelmente associada à destinação dada à atividade de gás natural: distribuição e transporte, afinal, não são senão modos de usar os gasodutos. E meras especificações técnicas do gasoduto parecem insuficientes para determinar, por si só, a sua finalidade, isto é, se ele é destinado ao transporte ou à distribuição, e, consequentemente, se envolve interesses gerais ou locais.
E chegamos ao segundo questionamento: como, com que critérios e por que instituição, deve ser feita a diferenciação entre interesse geral e interesse local?
A resposta oferecida pela lei é uma só: segundo ela, cabe à agência reguladora setorial, a partir de critérios estritamente técnicos, a prerrogativa de impor a gasodutos cuja operação acontece nos limites de um único estado uma classificação distinta daquela anteriormente verificada. Um gasoduto originalmente concebido como de distribuição poderá, por esses critérios, ser classificado como gasoduto de transporte. Na prática, a ANP definiria o que é interesse geral e, por consequência, o que é interesse local.
Interesse geral e interesse local são conceitos dotados de forte conotação política, todavia, não à toa previstos na própria divisão constitucional de competências normativas e exploratórias, como é o caso da exploração de atividades de gás natural. Mais do que os técnicos, são os poderes representativos quem têm condições de aferir e delimitar tais interesses.
Por isso mesmo, trata-se de conceitos idealmente avessos a categorizações puramente técnicas, não raro tecnocráticas, sob pena de que debates politicamente estratégicos sejam marcados por pernicioso déficit de legitimidade democrática.
Wittgenstein dizia que boa parte da inevitável incompreensão sobre o uso das palavras deriva da ausência de uma visão panorâmica do modo como elas são usadas (Investigações Filosóficas, p. 261). Uma visão panorâmica, neste caso, levaria em conta os componentes históricos e políticos envolvidos na construção do conceito e consolidados no seu uso cotidiano.
É essa visão panorâmica que parece faltar ao art. 7º, VI, da Lei do Gás, cujo texto, ao transferir à ANP a prerrogativa de dar nome a coisas irredutíveis a critérios técnicos, abriu as portas para uma invasão da competência exploratória dos estados.

