Na década passada, a arbitragem constituía um método de solução de controvérsias distante do poder público. Passados dez anos desde a edição da Lei 13.129/2015, que alterou a Lei 9.307/1996, e permitiu expressamente o uso da arbitragem pela administração pública, é momento de refletir sobre o instituto.
Antes de adentrar na discussão, é importante relembrar que o uso da arbitragem para solucionar controvérsias envolvendo a Administração Pública percorreu um longo caminho, marcado por proibições, questionamentos judiciais e da Corte de Contas. Apesar dessas questões, a previsão de utilização da arbitragem pelos entes públicos não é recente.
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Anteriormente à edição da Lei 13.129/2015, diversas leis setoriais já possibilitavam a inserção de cláusulas arbitrais nos contratos administrativos. Nesse sentido, merece destaque a Lei 19.477/2011, do estado de Minas Gerais, que, antes mesmo da alteração normativa em âmbito federal, já disciplinava o uso da arbitragem pelo poder público mineiro.
Atualmente, deve ser mencionada a nova Lei de Licitações (Lei 14.133/2021), que autoriza expressamente a utilização dos meios alternativos de solução de controvérsias, dentre eles a arbitragem, consolidando o seu uso pelo poder público.
Segundo consta na pesquisa “Arbitragem em números”[1] divulgada pela renomada arbitralista Selma Lemes em 2024, cujos dados se referem ao período de 2022 e 2023, as disputas envolvendo órgãos públicos representam quase 30% do número de arbitragens em andamento nas câmaras consultadas.
Para indicar dois exemplos que comprovam a expansão do uso no âmbito público, na Advocacia-Geral da União, a Procuradoria-Geral Federal[2], responsável pela representação judicial e extrajudicial das autarquias, agências reguladoras e fundações públicas, possui em andamento 19 arbitragens, contando ainda com 18 casos já encerrados. No âmbito estadual, pode ser citado o estado de São Paulo[3], que possui um núcleo especializado com 15 procedimentos.
A crescente adesão dos entes públicos a esse mecanismo de resolução de conflitos decorre sobretudo da expansão do sistema de justiça multiportas e da busca pelos entes públicos por soluções consensuadas, ágeis e que reflitam a necessária segurança jurídica. Além dessa mudança de paradigma na atuação estatal, sobressai o fato de que os entraves outrora existentes para o regular uso da arbitragem foram superados, especialmente após a supracitada alteração da Lei de Arbitragem.
Nessa linha de ideias, o instituto, que, inicialmente, era restrito ao setor privado, tornou-se uma alternativa legítima e eficaz para solucionar controvérsias envolvendo o poder público. Dentre as inúmeras vantagens apontadas para a adoção da arbitragem, duas podem ser destacadas: a celeridade e a especialidade dos árbitros.
A celeridade pode ser constatada ao se cotejar a duração regular de um processo judicial. Na pesquisa “Arbitragem em números”, informa-se que a duração média de um procedimento arbitral é de 24 meses. Por sua vez, o relatório “Justiça em números”, produzido pelo CNJ, noticia que um processo judicial na 1ª instância dura, em média, quatro anos e três meses.
A especialização dos árbitros manifesta-se na possibilidade de as partes indicarem, para composição do tribunal arbitral, profissionais independentes e imparciais, dotados de reconhecido conhecimento técnico nas matérias objeto das controvérsias. Destaca-se que, em regra, arbitragens envolvendo entes públicos discutem questões complexas, como concessões públicas, regulação e infraestrutura.
Um ponto que é imperioso desmistificar diz respeito ao sigilo. Comumente associa-se a arbitragem a procedimentos sigilosos. Vale dizer que a Lei de Arbitragem não contém nenhum dispositivo que trate do sigilo, o qual pode ser aplicado nas arbitragens entre partes privadas, mediante ajuste dos envolvidos. Contudo, tal fato não se aplica à Administração Pública. Em arbitragens envolvendo entidades públicas, a lei é expressa ao determinar que elas devem respeitar o princípio da publicidade.
Mesmo diante do crescente número de procedimentos arbitrais envolvendo o poder público, é essencial reconhecer que a Administração Pública carrega em suas relações regras que lhe são próprias e estruturadas para assegurar a defesa do patrimônio público, como por exemplo, o pagamento de suas condenações pelo regime de precatório. Essas peculiaridades do regime público trazem reflexos na condução dos procedimentos arbitrais.
Um desses reflexos refere-se à arbitrabilidade objetiva, isto é, matérias que podem ser discutidas na arbitragem. A Lei 9.307/1996 estabelece[4] que apenas direitos patrimoniais disponíveis podem ser objeto de procedimentos arbitrais. Contudo, no direito público identificar o que é arbitrável, e, portanto, direito patrimonial disponível, e o que é inarbitrável, revela-se mais desafiador do que a leitura do dispositivo legal sugere.
Para tentar balizar o tema, alguns normativos, como a nova Lei de Licitações, trazem dispositivos, que buscam apontar quais as matérias são arbitráveis. Entre os temas reconhecidamente arbitráveis destacam-se as questões relacionadas ao reequilíbrio econômico-financeiro de contratos, ao inadimplemento de obrigações contratuais e ao cálculo de indenizações.
Outro aspecto relevante está na condução das arbitragens. Diferentemente do processo judicial, que segue os ritos e prazos estabelecidos no Código de Processo Civil, a arbitragem caracteriza-se pela flexibilidade procedimental, de modo que as partes e os árbitros são livres para convencionar as regras procedimentais que regerão a demanda. Neste ponto, convém ressalvar que o CPC é aplicado nos procedimentos arbitrais apenas em caráter subsidiário.
Esse contexto de inaplicabilidade do CPC reflete-se em diversos aspectos, como na fixação de prazos e na produção de provas. Para balizar a produção probatória, alguns procedimentos fazem referência à regulamentos internacionais, como as diretrizes da International Bar Association, a IBA (Rules on the Taking of Evidence in International Arbitration).
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Verifica-se, assim, um regramento diferenciado, que por vezes adotam técnicas como hot tubbing[5], cross examination[6], bem como apresentação de laudos pelos assistentes técnicos das partes e a possibilidade de utilização de depoimentos escritos das testemunhas.
Tais questões conferem à arbitragem uma particularidade que exige da advocacia pública um novo olhar, já que o procedimento se afasta do tradicional sistema processual brasileiro e demanda constante aprimoramento e qualificação, imprescindíveis para que haja atuação eficiente e técnica.
Em um cenário de crescente complexidade contratual e sobrecarga do Judiciário, compreender os limites, as vantagens e os desafios da arbitragem é fundamental para expandir seu uso. Mais do que uma previsão contratual, a arbitragem deve servir como um mecanismo efetivo que solucione as controvérsias havidas nas relações contratuais, oferecendo a almejada segurança jurídica.
[1] https://canalarbitragem.com.br/wp-content/uploads/2024/12/Arbitragem-em-Numeros-2024.pdf. Consulta em 03/09/2025.
[2]https://www.gov.br/agu/pt-br/composicao/procuradoria-geral-federal-1/subprocuradoria-federal-de-consultoria-juridica/equipe-nacional-de-arbitragens-enarb Consulta em 03/09/2025.
[3] https://www.pge.sp.gov.br/Portal_PGE/Portal_Arbitragens/paginas/ Consulta em 03/09/2025.
[4] § 1o A administração pública direta e indireta poderá utilizar-se da arbitragem para dirimir conflitos relativos a direitos patrimoniais disponíveis.
[5] Método que os assistentes técnicos das partes são ouvidos conjuntamente em audiência.
[6] Inquirição cruzada de testemunhas.