O feminicídio constitui um problema universal e uma das expressões mais graves da violência de gênero. Em 2023, cerca de 51,1 mil mulheres e meninas foram mortas por parceiros íntimos ou membros da própria família no mundo, colocando o Brasil na quinta posição do ranking global. Apesar desse quadro alarmante, avanços normativos têm sinalizado um processo gradual de transformação institucional.
Em 2025, por exemplo, completam-se 10 anos da promulgação da Lei 13.104/2015, que tipificou o feminicídio como homicídio qualificado e crime hediondo, posteriormente alterado pela Lei 14.994/2024, que elevou o feminicídio a tipo penal autônomo, dentre outros efeitos, aumentando a pena de 20 a 40 anos de reclusão.
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Essa mudança legislativa, entretanto, ocorreu apenas em outubro de 2024. Por esse motivo, e considerando que os órgãos de segurança pública ainda estão em fase de adaptação aos novos parâmetros de registro, o anuário manteve, metodologicamente, a contabilização dos feminicídios dentro da categoria mais ampla de homicídios femininos. Essa decisão permite a comparabilidade histórica e evita a subnotificação de casos já classificados sob a legislação anterior.
Os dados de 2024 evidenciam a persistência da violência de gênero: foram registradas 8.957 tentativas de homicídio contra mulheres. São Paulo lidera em números absolutos de homicídios femininos (421), seguido por Bahia (388) e Minas Gerais (347).
Quando analisados apenas os feminicídios, São Paulo também ocupa a primeira posição (253), seguido de Minas Gerais (163) e Paraná (109). Em estados como Distrito Federal (65,7%), Acre (61,5%) e Santa Catarina (61,4%), mais da metade dos homicídios de mulheres foram motivados por razões de gênero, revelando que a violência letal contra mulheres está profundamente enraizada em dinâmicas relacionais e culturais.
Nos últimos quatro anos, observa-se um fenômeno paradoxal: enquanto os homicídios femininos apresentaram queda em estados como Amapá (–54,1%) e Sergipe (–41,3%), os feminicídios aumentaram de forma expressiva em outros estados, como Paraná (33,7%), Piauí (42,4%) e Maranhão (37,8%). Esses números sugerem não apenas o avanço do reconhecimento e registro do feminicídio, mas também a persistência e até a intensificação de relações sociais marcadas por desigualdades de gênero que se manifestam no espaço privado.
Essa especificidade é evidente ao se observar o local dos crimes: 64,3% dos feminicídios ocorreram dentro da residência da vítima, frequentemente cometidos por companheiros ou ex-companheiros, enquanto apenas 15,6% dos homicídios de homens ocorreram em ambiente doméstico (Anuário, 2025). Como argumentam Arendt (2020) e Bourdieu (2002), o espaço privado, permanece um território de desigualdade e dominação, onde a violência masculina opera como mecanismo de controle e reafirmação de autoridade.
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O assassinato de mulheres por razões de gênero constitui grave violação de direitos humanos e é um fenômeno multicausal, que transcende a resposta penal. Como aponta Portella (2019), o enfrentamento efetivo dessa violência demanda ação coordenada entre Estado, sociedade civil e instituições internacionais.
Mais do que o endurecimento das penas, é imprescindível atacar os determinantes estruturais que sustentam a violência, desigualdades econômicas, discriminação de gênero e padrões culturais que legitimam o uso da violência masculina como instrumento de autoridade, honra e respeito (Segato, 2003).
Assim, as mudanças institucionais introduzidas pela Lei 14.994/2024 só produzirão efeitos substantivos se acompanhadas de políticas públicas robustas de prevenção e de um esforço coletivo de transformação cultural.
ARENDT, H. A Condição Humana. Tradução Roberto Raposo. Revisão técnica Adriano Correia- 13 ed. Rio de Janeiro: Forense, [1958] 2020.
BOURDIEU, P. A dominação masculina. 2.ed. Trad. de Maria Helena Kühner. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.
PORTELLA, Ana Paula. Para além da violência doméstica: o reconhecimento das situações de feminicídio como imperativo para a eficácia das políticas de prevenção. In: PASINATO, Wania et al. (orgs.). Políticas públicas de prevenção à violência contra a mulher. São Paulo: Marcial Pons, 2019. p. 109-131
SEGATO, Rita Laura. Las estructuras elementales de la violencia: ensayos sobre género entre la antropología, el psicoanálisis y los derechos humanos. Bernal: Universidad Nacional de Quilmes, 2003