Aguarda julgamento no Supremo Tribunal Federal, entre outros temas relevantes, a exclusão do Imposto sobre Serviços (ISS) da base de cálculo do PIS/COFINS (Tema 118, nos autos do RE 592.616). A discussão, que já dura décadas, envolve um emaranhado de decisões judiciais divergentes.
No plenário do STF, o relator, ministro Celso de Mello, proferiu voto favorável aos contribuintes em agosto de 2020, seguido de voto divergente do ministro Dias Toffoli, em agosto de 2024 – ocasião em que o julgamento foi novamente interrompido por um pedido de vista.
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Quando a Suprema Corte finalmente concluir o julgamento, o resultado desse precedente será vinculante no âmbito do Judiciário. Ou seja, as decisões que se seguirem terão de replicar o entendimento firmado pelo STF – pacificando um assunto que há muito gera insegurança jurídica ao setor de serviços.
A fixação de precedentes, como o exemplo citado acima, representa uma virada profunda no Processo Civil brasileiro. Neste terceiro artigo da série “Jurisprudência tributária na prática”, tratamos da jornada da jurisprudência ao precedente no sistema jurídico nacional e o impacto dessa transformação na rotina dos contribuintes, da advocacia e dos próprios tribunais.
Da jurisprudência à vinculação: o caminho percorrido pelo Direito brasileiro
Historicamente, a jurisprudência, entendida como o conjunto de decisões reiteradas sobre determinada matéria, sempre exerceu papel relevante no sistema jurídico brasileiro. Contudo, seu caráter meramente persuasivo era insuficiente para resolver a insegurança decorrente de entendimentos conflitantes.
A evolução legislativa e doutrinária apontou, então, para um novo paradigma: o precedente judicial com força vinculante, formalizado pelo Código de Processo Civil de 2015, cuja função normativa passou a ocupar papel central na prática processual e na construção da jurisprudência nacional.
No sistema jurídico de civil law, o Brasil tradicionalmente privilegiou a lei escrita como fonte primária do Direito, atribuindo à jurisprudência apenas valor persuasivo. A jurisprudência era compreendida como o conjunto de decisões reiteradas dos tribunais sobre determinada matéria, refletindo uma orientação consolidada, mas sem força obrigatória para os demais julgadores.
Essa realidade começou a se modificar paulatinamente com reformas legislativas que fortaleceram o papel uniformizador dos tribunais superiores. O Código de Processo Civil de 1973 (CPC/73), em seu art. 479, já previa a possibilidade de uniformização da jurisprudência por meio de súmulas, buscando tratamento isonômico a casos semelhantes, antecipando o debate sobre a vinculação jurisprudencial.
Ao longo dos anos 1990 e 2000, novas normas (como as Leis 9.139/1995, 9.756/1998, 10.352/2001, 11.418/2006 e 11.672/2008, entre outras) passaram a conferir eficácia mais robusta a súmulas e decisões reiteradas, permitindo ao relator negar seguimento a recursos contrários a esses entendimentos.
Esses dispositivos abriram caminho para a compreensão de que determinadas decisões poderiam ultrapassar a função meramente interpretativa e adquirir eficácia normativa, principalmente quando garantissem segurança jurídica, isonomia e eficiência — valores fundamentais do devido processo legal.
O CPC/2015 e a estruturação do sistema de precedentes obrigatórios
Com a entrada em vigor do novo Código de Processo Civil (Lei 13.105/2015), o Brasil deu um passo decisivo rumo à consolidação de um sistema de precedentes vinculantes.[1] O novo diploma incorporou expressamente a lógica do stare decisis[2], aproximando-se do modelo do common law, embora adaptado às peculiaridades do ordenamento jurídico nacional.[3]
Os artigos 926 e 927 do CPC/15 são os pilares dessa mudança. O art. 926 impõe aos tribunais o dever de manter sua jurisprudência estável, íntegra e coerente. Já o art. 927 enumera decisões que devem ser obrigatoriamente observadas por juízes e tribunais, entre elas:
- Decisões do STF em controle concentrado de constitucionalidade;
- Súmulas vinculantes;
- Julgamentos de casos repetitivos (REsp e RE com repercussão geral);
- Acórdãos proferidos em Incidente de Assunção de Competência (IAC) ou em Incidente de Resolução de Demandas Repetitivas (IRDR).
Além disso, o CPC/15 exige que o julgador fundamente adequadamente qualquer decisão que contrarie um precedente, demonstrando a(s) diferença(s) do caso em julgamento ou por que o entendimento deve ser superado (art. 489, §1º, VI). Essa regra fortalece a responsabilidade argumentativa dos magistrados e busca evitar decisões arbitrárias.
Outro avanço importante é a modulação dos efeitos da mudança de entendimento, prevista no §3º do art. 927. Quando houver alteração de jurisprudência dominante, os tribunais podem ajustar os efeitos da decisão para proteger o interesse social e a segurança jurídica, reforçando o caráter normativo dos precedentes.
O impacto dos precedentes vinculantes na prática processual e jurisdicional
A introdução dos precedentes obrigatórios tem impactos diretos e profundos na prática forense. Em primeiro lugar, promove a racionalização do Judiciário, ao evitar a rediscussão infindável de teses já decididas por tribunais superiores. Essa racionalização também se manifesta na celeridade processual, especialmente com a criação dos mecanismos de julgamento em bloco e de suspensão de processos repetitivos.
Na perspectiva dos operadores do Direito, especialmente advogados e defensores públicos, o sistema de precedentes vinculantes exige maior atenção estratégica na fundamentação jurídica, voltada à análise de aplicabilidade ou distinção de precedentes. Do ponto de vista judicial, há o fortalecimento da coerência institucional e da legitimidade das decisões proferidas.
Além disso, o CPC/15 prevê mecanismos específicos de controle e proteção da autoridade dos precedentes, como a reclamação prevista no art. 988 e a caracterização da omissão decisória quando não há manifestação sobre tese firmada em IRDR ou IAC (art. 1.022, Parágrafo Único, I).
Doutrinadores como Daniel Mitidiero, Humberto Ávila e Luís Roberto Barroso destacam que o novo sistema busca assegurar três valores fundamentais: segurança jurídica, isonomia e eficiência. O respeito aos precedentes, portanto, não é uma limitação ao livre convencimento do juiz, mas uma forma de reforçar o compromisso com a previsibilidade e com a estabilidade do sistema de justiça.
O precedente como instrumento de estabilidade institucional
A evolução da jurisprudência a um sistema estruturado de precedentes obrigatórios, consagrado no CPC/2015, representa uma mudança cultural e normativa sem precedentes na história do Direito Processual brasileiro. Se antes a jurisprudência era fonte indireta e de caráter meramente persuasivo, hoje o precedente se impõe como instrumento de estabilidade institucional e garantia de isonomia material.
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Contudo, essa jornada apresenta desafios importantes, tal como a amplitude de efeitos dos precedentes, a exemplo do entendimento firmado pelo STF na conhecida tese do século, no sentido da exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS/Cofins (tema 69), e as várias teses decorrentes (ou filhotes) como aquela que inaugura este artigo. Afinal, a tese 69 não seria suficiente à mesma proclamação (exclusão do PIS/Cofins) em relação ao ISS?
Apesar dos desafios, é inegável que, com essa virada normativa e sua ampla aplicação pelos Tribunais, o Brasil avança em direção a um sistema jurídico mais previsível, técnico e equitativo, reverberando a máxima de que o Direito deve ser estável, mas não estático (POUND, Roscoe. The spirit of the common law. Francestown: Marshall Jones Company, 1921).
[1] Humberto Ávila assinala que a vinculação aos precedentes judiciais “(…) é uma decorrência do próprio princípio da igualdade: onde existirem as mesmas razões, devem ser proferidas as mesmas decisões, salvo se houver uma justificativa para a mudança de orientação, a ser devidamente objeto de mais severa fundamentação. Daí se dizer que os precedentes possuem uma força presumida ou subsidiária.” (ÁVILA, Humberto. Segurança jurídica: entre permanência, mudança e realização no Direito. São Paulo: Malheiro, 2011).
[2] Na lição de Mitidiero, a regra do stare decisis “(…) densifica a segurança jurídica e promove a liberdade e a igualdade em uma ordem jurídica que se serve de uma perspectiva lógico-argumentativa da interpretação”. (MITIDIERO, Daniel. Precedentes: da persuasão à vinculação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016)