A litigância predatória — ou o uso abusivo e massificado do direito de ação judicial — tornou-se um fenômeno prejudicial para o ambiente de negócios e para os serviços públicos no Brasil. Ele sobrecarrega o Judiciário, encarece serviços, mina a confiança na Justiça e freia a prosperidade.
A Constituição Federal assegura a assistência jurídica gratuita aos que comprovarem insuficiência de recursos (artigo 5º, inciso LXXIV). Trata-se de um pilar do Estado de Direito. No entanto, o que era para ser um instrumento de inclusão tem sido explorado por grupos que transformaram o litígio em modelo de negócio.
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Escritórios especializados ajuízam milhares de ações idênticas, muitas vezes automatizadas, com fundamentos frágeis ou artificiais. O objetivo não é a reparação de um direito violado, mas a obtenção de acordos rápidos, a pressão sobre grandes empresas e, em última instância, o lucro. A justiça gratuita, nesse contexto, é usada como escudo para reduzir riscos e maximizar ganhos.
O setor aéreo é um exemplo emblemático. Em 2023, o Brasil concentrou 98,5% de todas as ações judiciais contra companhias aéreas no mundo. Cerca de 10% dos 400 mil processos foram movidos por apenas 20 escritórios. A conta é bilionária: estima-se que as empresas gastem R$ 1 bilhão por ano com litígios, valor que, inevitavelmente, é repassado ao consumidor na forma de passagens mais caras.
Mas o problema não se restringe aos céus. Bancos, operadoras de telefonia e varejistas também são alvos frequentes. Ações em massa questionam contratos bancários legítimos, alegam cobranças indevidas sem provas e, em alguns casos, são movidas por autores que nem sequer têm ciência do processo. Há relatos de advogados que ajuízam ações, com petições padronizadas e sem qualquer análise individualizada.
O impacto é devastador. O Judiciário perde tempo e recursos com demandas artificiais, enquanto casos legítimos enfrentam filas cada vez maiores. Empresas gastam fortunas com defesa e acordos. E os verdadeiros beneficiários da justiça gratuita veem o acesso dificultado por uma crescente desconfiança institucional, fundada na morosidade de se obter a solução para o conflito que os levaram ao Judiciário.
Além do setor privado, o setor público também tem sido alvo recorrente da litigância abusiva, com impactos significativos sobre o orçamento e a eficiência dos serviços essenciais. No âmbito do SUS, por exemplo, ações repetitivas e padronizadas exigindo medicamentos de alto custo fora da lista oficial têm gerado prejuízos bilionários, muitas vezes baseadas em laudos genéricos ou prescrições sem respaldo técnico.
Investigações revelam ainda o uso de documentos falsificados e a atuação de grupos organizados que se aproveitam de decisões liminares para obter vantagens indevidas.
A Advocacia-Geral da União (AGU) também identificou a proliferação de ações artificiais contra órgãos públicos, enquanto tribunais estaduais apontam o uso de recursos protelatórios por grandes litigantes públicos como forma de adiar o cumprimento de decisões. Estima-se que apenas em São Paulo, a litigância predatória no setor público represente um custo superior a R$ 2,7 bilhões por ano, comprometendo a alocação de recursos e o atendimento de demandas legítimas da população.
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Felizmente, há reação. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) incorporou ferramenta de inteligência artificial à Plataforma Digital do Poder Judiciário (PDPJ-Br) para apoiar na detecção de litigância predatória e processos repetitivos. No Legislativo, há propostas para discutir critérios objetivos para a justiça gratuita, litigância predatória e pretensão resistida, que podem ser relevantes para alterar o cenário atual.
Oportunidades existem também em políticas públicas que estimulem a busca de soluções extrajudiciais, como, por exemplo, o fortalecimento do Consumidor.gov.br, para resolver conflitos de forma célere e eficaz, e aposta na conciliação como solução de conflitos pela AGU, que permitiu, por exemplo, uma economia de R$ 84,52 bilhões, entre janeiro e outubro de 2024.
A litigância predatória é um sintoma de um sistema que precisa se reinventar. O acesso à Justiça não pode ser confundido com o abuso do Judiciário. Preservar a justiça gratuita como instrumento de equidade exige coragem para enfrentar distorções e compromisso com a integridade institucional.
O real direito à justiça, como mecanismo de desenvolvimento inclusivo, depende disso.