Em 23 de abril de 2025, o plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) concluiu o julgamento da Questão de Ordem na Ação Rescisória 2876, firmando relevante e controverso precedente sobre a desconstituição de decisões transitadas em julgado fundadas em normas posteriormente declaradas inconstitucionais.
Embora o acórdão ainda não esteja disponível, não permitindo analisar o detalhamento da fundamentação, a decisão já foi publicada[1], imprimindo efeito ao julgamento e revelando que nele:
- foi declarada a inconstitucionalidade do §14 do art. 525 e do §7º do art. 535 do CPC[2], sob o entendimento de que condicionavam indevidamente a inexigibilidade do título judicial à anterioridade do trânsito em julgado da decisão do STF em relação à decisão exequenda;
- conferiu-se interpretação conforme à Constituição ao §15 do art. 525 e ao §8º do art. 535 do CPC[3], para estabelecer que o STF poderá definir caso-a-caso os efeitos temporais de seus precedentes, inclusive no que se refere à coisa julgada, podendo admitir ou não a rescisão, conforme o risco à segurança jurídica ou ao interesse social;
- fixou-se que, na ausência de manifestação expressa, a rescisão não pode retroagir mais de cinco anos contados da propositura da ação rescisória, que deve ser ajuizada no prazo de dois anos a partir do trânsito em julgado da decisão do Supremo.
Tais definições abrem um novo capítulo em relação aos problemas que podem ser causados pela modulação dos efeitos temporais dos precedentes qualificados, agora em relação às implicações quanto à coisa julgada, mais precisamente no que se refere à inexigibilidade do título executivo e à necessidade de propositura de ação rescisória e seu alcance.
A questão remete ao julgamento do Tema 69 pelo STF, envolvendo a famosa “tese do século”, no qual se concluiu, em suma, pela exclusão do ICMS da base de cálculo do PIS e da Cofins. O mérito foi decidido em 2017, mas a modulação dos efeitos apenas foi definida quatro anos depois, em 2021, concluindo-se que a restituição apenas poderia alcançar os cinco anos anteriores ao julgamento do mérito da Repercussão Geral.
O longo silêncio da Corte quanto à modulação não apenas gerou uma corrida dos contribuintes à propositura de ações judiciais, com o objetivo de assegurar que se lhes fosse aplicado o mesmo entendimento, como permitiu que inúmeras decisões transitassem em julgado com lastro na tese de mérito fixada pelo STF. Houve o transito em julgado inclusive de decisões proferidas em ações propostas depois do julgamento de mérito, em relação às quais o contribuinte já vinha utilizando o seu direito de crédito por meio de compensações administrativas.
Assim, no momento do trânsito em julgado das decisões proferidas nos casos concretos, inclusive em relação a ações propostas depois do julgamento do mérito do Tema de Repercussão Geral, ainda não havia pronunciamento do STF quanto à delimitação da eficácia no tempo.
Foi nesse cenário que surgiram o Tema Repetitivo 1245 do Superior Tribunal de Justiça (STJ) e o Tema de Repercussão Geral 1338 do STF, que concluíram pela possibilidade de ajuizamento de ação rescisória para adequar decisões anteriores à modulação de efeitos estabelecida no Tema 69/STF.
Ou seja, foi reconhecido tanto pelo STF como pelo STJ que mesmo em relação a decisões tenham transitado em julgado em momento anterior à modulação de efeitos, a superveniência da definição de um novo marco temporal, limitando a eficácia no tempo, autoriza a desconstituição da coisa julgada por meio do ajuizamento de ação rescisória.
Essa convergência jurisprudencial já evidenciava a tendência de consolidação de um modelo em que a definição da eficácia temporal dos precedentes qualificados se tornava um elemento central para a estabilidade das decisões judiciais, também já sinalizando o risco paradoxal de aumento da macrolitigância.
O julgamento da Questão de Ordem na AR 2876 se insere nesse mesmo contexto, abrindo um novo capítulo, ainda mais amplo, no tocante à possibilidade de o STF definir quanto à necessidade, a possibilidade e o alcance da ação rescisória.
Os dispositivos declarados inconstitucionais (§14 do art. 525 e do §7º do art. 535 do CPC) previam que a ineficácia do título executivo tinha como condição que a decisão do STF fosse anterior ao trânsito em julgado da decisão exequenda.
Ou seja, se a decisão do STF fosse proferida antes do trânsito em julgado da decisão do caso concreto, implicaria ineficácia desta, afastando o cabimento da ação rescisória, bastando a impugnação direta, na primeira oportunidade, opondo-lhe a prevalência do entendimento do STF.
Mas se houvesse o trânsito em julgado da decisão do caso concreto antes da decisão do STF, previam o §15 do art. 525 e o §8º do art. 535 do CPC o cabimento da ação rescisória, cujo prazo de propositura apenas começaria a correr do trânsito em julgado da decisão do STF.
Na Questão de Ordem na AR 2876 foi conferida interpretação conforme à Constituição, em relação a estes dispositivos, de maneira a ressalvar ao STF a prerrogativa de admitir ou não o cabimento da ação rescisória.
Assim fica claro que o STF poderá definir que não será cabível a ação rescisória, ou mesmo definir prazos diferentes para a sua propositura ou para o alcance do seu objeto, de acordo com as características de cada caso, considerando o grave risco de lesão à segurança jurídica ou ao interesse social.
E se não definir prazos específicos, o STF estabeleceu como padrão que o prazo para a propositura da ação rescisória será de 2 anos contados do transito em julgado da decisão do STF, podendo alcançar os 5 anos anteriores à propositura.
Mas não apenas isso. Uma leitura combinada da fundamentação (i) da declaração de inconstitucionalidade e (ii) da interpretação conforme a Constituição, pode levar à conclusão de que o STF poderia decidir pela ineficácia do título executivo (com a dispensa da necessidade de ação rescisória) até mesmo em relação a decisões judiciais que tenham transitado em julgado antes da decisão do STF.
Ou seja, poderia ser dispensada a necessidade de ação rescisória, acarretando a ineficácia até mesmo de decisões que transitaram em julgado antes da decisão do STF.
Neste sentido, aliás, é prevista no mesmo extrato da decisão da Questão de Ordem na AR 2876, já publicada, que “O interessado poderá apresentar a arguição de inexigibilidade do título executivo judicial amparado em norma jurídica ou interpretação jurisdicional considerada inconstitucional pelo STF, seja a decisão do STF anterior ou posterior ao trânsito em julgado da decisão exequenda, salvo preclusão”.
Vale questionar, a propósito, se haveria prazo para apresentar a arguição de inexigibilidade, quando menos para impor com o limite máximo o mesmo prazo de dois anos da rescisória, bem como se a preclusão se operará de maneira ordinária, inclusive na modalidade consumativa, bastando à parte interessada deixar passar a primeira oportunidade de falar nos autos, deixando de alegá-la.
Ademais, em ocorrendo a preclusão consumativa, ainda caberia a ação rescisória? A arguição de inexigibilidade e a ação rescisória são autoexcludentes ou podem ser movidas concomitantemente? Há fungibilidade, no sentido de que a rescisória pode sobrescrever e superar a arguição, ou a arguição pode ser convolada em rescisória ou quando menos suspender o prazo pra de propositura?
Aliás, dando um passo atrás, a própria decisão em Questão de Ordem em Ação Rescisória configura um precedente qualificado que vincula todo o sistema de precedentes e o próprio STF? Afinal, não é listada como precedente de observância obrigatória (art. 927 do CPC), nem causa de julgamento liminar de improcedência em primeira instância (art. 332 do CPC), nem de julgamento singular no Tribunal (art. 932, IV, do CPC), nem de dispensa de remessa necessária (art. 496 do CPC), nem pode ser classificada tecnicamente como mecanismo de controle concentrado ou difuso de constitucionalidade.
Outro ponto importante é que a decisão da Questão de Ordem também parece não abordar como se dá a sua integração com a Súmula 343/STF e o Tema 136/RG.
A Súmula 343/STF, editada em 1963, sempre foi tradicionalmente invocada como obstáculo à desconstituição de decisões judiciais fundadas em entendimentos que, à época do julgamento do caso concreto, eram objeto de controvérsia jurisprudencial legítima — assim consagrando a segurança jurídica e a estabilidade da coisa julgada formada no contexto de interpretação controvertida nos tribunais.
Em 2008, no julgamento de embargos de declaração no RE 328.812/AM, o Plenário entendeu que, em razão da supremacia da ordem constitucional, a Súmula não tinha aplicação questões de matéria constitucional, não se podendo limitar a rescisão apenas pela instablidade jurisprudencial da matéria, sob pena de mitigar a máxima efetividade da norma constitucional.
Em 2014, houve um refinamento deste entendimento por meio do Tema 136/RG, em que o STF firmou a tese de que não cabe ação rescisória quando o acórdão rescindendo estiver em conformidade com a orientação do STF vigente à época de sua prolação, ainda que esse entendimento tenha sido superado posteriormente.
Nesta mesma oportunidade, aliás, foi reafirmado o entendimento de que a Súmula 343/STF tinha sua aplicação restrita às situações em que não existisse decisão do STF em controle de constitucionalidade, havendo divergência jurisprudencial no âmbito dos outros Tribunais.
Naquela altura, portanto, (i) a Súmula 343/STF se mantinha aplicável para impedir a rescisão de decisão judicial que transitou em julgado no contexto de divergência jurisprudencial dos demais Tribunais, antes de qualquer decisão de controle de constitucionalidade pelo STF, mas não se aplicava nos casos de posterior decisão de controle de constitucionalidade pelo STF, porém (ii) a Súmula 343/STF não se aplicava em caso de posterior decisão do STF em controle de constitucionalidade, sendo cabível a ação rescisória para rescindir a coisa julgada para o seu alinhamento ao entendimento do STF; mas (iii) caso a decisão transitada em julgado se baseasse em entendimento do STF da época, sobrevindo posterior mudança de entendimento pelo próprio STF, não era cabível a rescisória em prestígio à segurança jurídica e a estabilidade das decisões judiciais.
Ocorre que, agora, ao julgar a Questão de Ordem AR 2876, o Supremo passou a admitir a ação rescisória mesmo quando a decisão rescindenda estiver em conformidade com precedente firmado pelo plenário da Corte à época de sua prolação, em razão de mudança superveniente de entendimento em precedente qualificado, iniciando-se o prazo a partir do trânsito em julgado desta última decisão, assim aparentemente superando o entendimento firmado no Tema 136/RG.
Como se percebe, está em xeque a compatibilização entre a autoridade dos precedentes constitucionais e a preservação da segurança jurídica, em contextos marcados por decisões que, embora formalmente estáveis, tornaram-se materialmente incompatíveis com a interpretação vigente da ordem constitucional.
A reboque, é intuitivo que a multiplicação e a alteração dos critérios de eficácia temporal, com implicações na definição dos instrumentos processuais cabíveis, são fontes de agravamento da macrolitigância fiscal, aumentando a quantidade de medidas judiciais propostas, ações e recursos, com a consequente piora no congestionamento da prestação jurisdicional.
A sobrecarga do sistema de justiça brasileiro é fato contra o qual se luta há muito tempo, introduzindo-se o sistema de precedentes justamente para solucionar a judicialização de demandas repetidas e menos complexas. Ocorrendo que a falta de amadurecimento e previsibilidade do sistema de modulação de efeitos destas decisões passou a ser causa de aumento da litigiosidade, dificultando a previsão dos efeitos e multiplicando os meios de revisão de causas já decididas.
Assim sendo, a partir da nova competência da Corte Constitucional para definir, para além da modulação quanto ao início dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, também o cabimento ou não, e os prazos de retroação da rescisão da coisa julgada em cada novo precedente, conforme tese fixada na QO na AR 2876, surge o questionamento: essa possibilidade de decidir sobre a extensão da rescisão de causas já transitadas em julgado tende a reduzir ou intensificar a macrolitigância?
[1] “Decisão: O Tribunal resolveu questão de ordem fixando as seguintes teses: “O § 15 do art. 525 e o § 8º do art. 535 do Código de Processo Civil devem ser interpretados conforme à Constituição, com efeitos ex nunc, no seguinte sentido, com a declaração incidental de inconstitucionalidade do § 14 do art. 525 e do § 7º do art. 535: 1. Em cada caso, o Supremo Tribunal Federal poderá definir os efeitos temporais de seus precedentes vinculantes e sua repercussão sobre a coisa julgada, estabelecendo inclusive a extensão da retroação para fins da ação rescisória ou mesmo o seu não cabimento diante do grave risco de lesão à segurança jurídica ou ao interesse social. 2. Na ausência de manifestação expressa, os efeitos retroativos de eventual rescisão não excederão cinco anos da data do ajuizamento da ação rescisória, a qual deverá ser proposta no prazo decadencial de dois anos contados do trânsito em julgado da decisão do STF. 3. O interessado poderá apresentar a arguição de inexigibilidade do título executivo judicial amparado em norma jurídica ou interpretação jurisdicional considerada inconstitucional pelo STF, seja a decisão do STF anterior ou posterior ao trânsito em julgado da decisão exequenda, salvo preclusão (Código de Processo Civil, arts. 525, caput, e 535, caput)”. A proposição 2 das teses foi acompanhada com ressalvas pelos Ministros Edson Fachin, Luiz Fux e Dias Toffoli. Redigirá o acórdão o Ministro Gilmar Mendes (Relator). Presidência do Ministro Luís Roberto Barroso. Plenário, 23.4.2025” (QO-AR 2876; DJE divulgado em 24/04/2025, publicado em 25/04/2025)
[2] Art. 525, § 14. A decisão do Supremo Tribunal Federal referida no § 12 deve ser anterior ao trânsito em julgado da decisão exequenda.
Art. 535. § 7º A decisão do Supremo Tribunal Federal referida no § 5º deve ter sido proferida antes do trânsito em julgado da decisão exequenda.
[3] Art. 525. § 15. Se a decisão referida no § 12 for proferida após o trânsito em julgado da decisão exequenda, caberá ação rescisória, cujo prazo será contado do trânsito em julgado da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal.
Art. 535. § 8º Se a decisão referida no § 5º for proferida após o trânsito em julgado da decisão exequenda, caberá ação rescisória, cujo prazo será contado do trânsito em julgado da decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal.