Nos últimos anos, o debate sobre a crise da democracia e os desafios da polarização política tem se intensificado em diversas partes do mundo. Uma possível solução para essa crise está na ampliação da democratização e no fortalecimento do desenvolvimento educacional.
O conceito de “Democratizar a Democracia”, defendido por diversos cientistas políticos, tem ganhado destaque, incluindo sua abordagem no recente livro Como Salvar as Democracias, dos doutores Levitsky e Ziblatt[1]. Essa perspectiva já vem sendo adotada por países mais estáveis como estratégia para enfrentar a crise democrática atual.
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O fortalecimento da democracia, aliado aos processos educacionais, institucionais e sociais, exige uma reforma ampla na experiência e no funcionamento das instituições democráticas. Esse avanço impulsionaria tanto a educação quanto as instituições, priorizando a representatividade, eficiência, transparência, pensamento crítico e inclusivo, saúde mental, consciência política e democrática, além do desenvolvimento de práticas organizacionais saudáveis e de uma convivência mais harmônica.
Para isso, é essencial valorizar diferentes modelos democráticos e ampliar a participação de grupos historicamente sub-representados, incluindo minorias e mulheres em espaços de poder. O aumento da presença feminina na política e na gestão pública fortalece a diversidade de perspectivas e contribui para decisões mais justas e eficazes.
Sem a representatividade de todos os grupos sociais existentes na sociedade, a democracia resta enfraquecida e os direitos dos grupos minorizados são os primeiros a serem relativizados e ameaçados.
O relatório Direitos das Mulheres em Revisão 30 Anos Depois de Pequim, publicado no mês de março do corrente ano em Nova York, por ocasião a da 69 reunião da CSW – Comissão da Situação da Mulher – mostra que, em 2024, quase um quarto dos governos avaliados relatou retrocessos nos direitos das mulheres.
Ora, a estrutura atual de poder, como já ensinou Simone de Beauvoir[2] é pensada e estruturada a partir dos homens, resta evidente que a democracia é diretamente impactada quando as leis são criadas e politicas públicas são pensadas por uma elite homogênea e não representam a diversidade da sociedade.
Em um cenário onde a maioria dos legisladores são homens brancos e as principais destinatárias dessas leis são mulheres negras e pobres, ocorre um grave déficit de representatividade e justiça social. Esse fenômeno gera políticas públicas desalinhadas com as reais necessidades da população vulnerável, perpetuando desigualdades históricas e restringindo a democracia a um grupo privilegiado.
Nesse panorama se inserem instituições do porte da Advocacia-Geral da União (AGU), do Poder Judiciário Brasileiro e do Poder Legislativo, todos com notória sub-representação feminina nos seus quadros. A óbvia e gritante ausência de mulheres no Poder Legislativo brasileiro e nas esferas mais altas das Cortes de Justiça, levou à adoção de cotas a fim de incentivar uma representação mais paritária, seja no momento do ingresso (cotas parlamentares) seja no momento da promoção para instâncias superiores (judiciário).
A Advocacia-Geral da União (AGU) é a instituição responsável por representar a União, tanto judicial quanto extrajudicialmente, atuando diretamente ou por meio de órgãos vinculados. Além disso, exerce funções de consultoria e assessoramento jurídico do Poder Executivo, conforme previsto no artigo 131 da Constituição Federal.
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No âmbito judicial, a AGU defende o governo federal em ações que envolvem a administração direta e indireta, além de questões tributárias, previdenciárias, econômicas e financeiras, entre outras. Já na esfera consultiva, cabe à instituição orientar o Poder Executivo Federal sobre a legalidade das políticas públicas, participando de todas as etapas do seu ciclo. Isso inclui a análise de projetos de lei, desde as fases de sanção e veto até a avaliação dos resultados alcançados.
Como defensora da União, a AGU assegura a legalidade dos atos administrativos, como decretos, portarias e resoluções, além de garantir a proteção dos gestores públicos. Sua atuação também contribui para a preservação das instituições democráticas e para a efetividade das políticas públicas.
Como se vê, a atuação da AGU é determinante na condução e efetivação de maneira direta ou indireta das políticas públicas no Brasil, porém sua composição ainda tem um déficit de representatividade frente aos destinatários dessas politicas públicas.
A atual composição do quadro de pessoal da instituição[3] é de 45,1% de mulheres, ou seja, inferior à participação apontada pelo Censo IBGE 2022 de 51,5% de mulheres na sociedade brasileira. Na perspectiva racial, os dados indicam que 28% do quadro de pessoal da AGU é composto por pessoas negras, o que significa representatividade de cerca de metade do percentual da população negra na sociedade brasileira (55,5% segundo o Censo 2022 do IBGE).
Sobre o perfil da composição de lideranças na Advocacia-Geral da União, verifica-se que embora no quesito gênero a AGU já tenha caminhado bastante, tendo 40% de mulheres na alta liderança (cargos de nível 13 a 17), 49% em média liderança (cargos de nível 1 a 12), a representatividade negra nos cargos tem pequena variação conforme o nível hierárquico. Nos cargos de média liderança, pessoas negras ocupam 28,6% das vagas. Em relação aos que correspondem a níveis superiores de responsabilidade e decisão, a representatividade negra é um pouco menor, situando-se em 27,5%.
Esse cenário evidencia a necessidade de ampliar as iniciativas de equidade racial dentro da instituição, especialmente nos cargos de maior responsabilidade. Garantir uma representação mais justa é essencial para construir uma cultura organizacional baseada na diversidade e inclusão.
Instituições que implementam práticas inclusivas reforçam seu compromisso com os princípios de equidade e respeito, fortalecendo a confiança pública e sua legitimidade. Esse fator é fundamental para a sustentabilidade das políticas de inovação, pois o engajamento e a participação da sociedade são determinantes para o sucesso de qualquer iniciativa pública.
Assim, a AGU tem procurado nos últimos dois anos e meio promover, soluções inovadoras de equidade responde a uma demanda crescente por justiça social e reparação histórica, procurando não só aumentar a representatividade feminina em cargos de direção, como também, dotar seus membros de formação adequada para contribuir na promoção de políticas públicas que sejam aderentes à sociedade a qual se destinam.
Nesse contexto foi formulado o Programa Esperança Garcia – Trajetórias Negras na Advocacia Pública Nacional, instituído pela Advocacia-Geral da União em articulação com o Ministério da Igualdade Racial e formalizado na Portaria Interministerial AGU/MIR nº 3, de 5 de setembro de 2023, implementado em parceria com organização da sociedade civil especializada na temática de igualdade racial[4]. Esse programa que concede bolsas e curso preparatório para o concurso de ingresso na carreira, inova em sua formatação, para além do recorte racial, traz o recorte de gênero, tendo destinado no mínimo 50% das vagas de bolsistas para mulheres.
Como exemplo de impacto na atuação institucional, em sua atuação consultiva, a AGU emitiu o PARECER Nº JM – 03 de 04 de setembro de 2023, parecer vinculante sobre o tema assedio sexual. O objetivo do parecer é uniformizar a aplicação de punições e conferir maior segurança jurídica aos órgãos e entidades da Administração Pública Federal no tratamento disciplinar conferido à prática de assédio sexual por servidor público federal no seu exercício profissional. Recentemente, mais três pareceres vinculantes também foram emitidos em proteção às mulheres e à primeira infância:
O Parecer nº JM-07 garante a servidoras vítimas de violência doméstica o direito à remoção por motivo de saúde comprovada por junta médica oficial ou quando houver risco à sua integridade física ou mental com base em medida protetiva judicial de afastamento do agressor.
O Parecer nº JM – 08 define que nos casos de monoparentalidade devem ser estendidos ao pai servidor público os mesmos direitos à licença-maternidade e ao salário-maternidade garantidos à mãe, em consagração à proteção integral da criança.
Já o Parecer º JM – 09 fixa o entendimento de que a mãe servidora ou trabalhadora não gestante em união homoafetiva tem direito ao gozo de licença-maternidade. Caso a companheira tenha utilizado o benefício, fará jus à licença pelo período equivalente ao da licença-paternidade.
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O Comitê de Diversidade e Inclusão, pela atuação do Grupo de Trabalho de Equidade de Gênero tem promovido, juntamente com a Escola Superior da AGU, ações que visam promover a sensibilização e capacitação para o público interno e externo da AGU com o escopo de tratar de temas relacionados a gênero com abordagem transversal e interseccional.
Cabe mencionar ainda, importante iniciativa, já em curso na Procuradoria-Geral Federal e agora estendida para toda a AGU, veiculada em portaria normativa do Advogado-Geral, que define percentuais mínimos para a ocupação de cargos de liderança por mulheres no âmbito da instituição. A medida tem o objetivo de promover a equidade de gênero e a diversidade racial na AGU, além de servir como referência para que outros órgãos públicos também adotem essas medidas.
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Na mesma linha a Procuradoria Geral da União – PGU, publicou portaria normativa para instituir uma política de atuação que considere as especificidades das mulheres, a PGU se alinha a outras iniciativas bem-sucedidas implementadas na Procuradoria-Geral Federal e na Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, que têm se destacado por suas práticas inclusivas e comprometidas com a equidade. E, ainda, com a importante iniciativa do CNJ que instituiu o Protocolo para Julgamento com Perspectiva de Gênero no julgamento em todo o Poder Judiciário.
Ao consolidar um ambiente mais diverso e inclusivo, a AGU não apenas reforça seu compromisso com a justiça social, mas também influencia positivamente outros órgãos da administração federal, promovendo mudanças estruturais que já demonstram resultados concretos em um curto espaço de tempo.
[1] LEVITSKY, Steven; ZIBLATT, Daniel. Como salvar a democracia. Rio de Janeiro: Zahar, 2023
[2] Destituída de significação própria, a mulher é aquilo que o “homem decide que seja” (BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo Rio de Janeiro: Editora Nova Fronteira, 2009c. p. 16)
[3] O dado apresentado abrange as carreiras jurídicas de Advogado da União, Procurador Federal, e os servidores técnico-administrativos vinculados à Advocacia-Geral da União. Não estão incluídos nesses montantes os membros da carreira de Procurador da Fazenda Nacional, de Procurador do Banco Central e os servidores que atuam no apoio a essas duas carreiras jurídicas cuja vinculação administrativa está no Ministério da Fazenda e no Banco Central, respectivamente.
[4] Na primeira turma do Programa Esperança Garcia, ciclo 2024/2027, a parceria foi celebrada no início do ano de 2024 com a organização da sociedade civil Instituto Peregum, com sede em São Paulo-SP, que possui relevante histórico em projetos e iniciativas relacionados a ações afirmativas raciais.