A edição da Resolução CVM 175, em dezembro de 2022, transcende a mera atualização normativa para a indústria de fundos de investimento no Brasil. Representa, de fato, uma recalibração fundamental dos padrões de governança, responsabilidade e operação, consolidando um arcabouço antes fragmentado e alinhando o mercado doméstico às práticas internacionais.
No cerne dessa transformação, emerge um protagonista com responsabilidades ampliadas e um papel estratégico inegavelmente fortalecido: o compliance. Longe de ser apenas uma camada adicional de burocracia, a Resolução CVM 175 impulsiona o compliance de uma postura predominantemente reativa para uma atuação proativa, integrada à gestão de riscos e essencial à sustentabilidade das instituições financeiras.
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Historicamente, o compliance na gestão de recursos de terceiros, guiado por normas como a Instrução CVM 555 e códigos de autorregulação da Anbima, focava no cumprimento de regras, políticas e procedimentos. A estrutura frequentemente centralizava muitas responsabilidades no administrador fiduciário, que atuava como principal contratante e ponto focal perante reguladores e cotistas.
Embora funcional, esse modelo poderia, por vezes, diluir a percepção da responsabilidade direta do gestor por controles operacionais que iam além da decisão de investimento. A área de compliance, embora já dotada de deveres importantes como implementação de controles, segregação de funções e treinamento, operava dentro desse paradigma.
A Resolução CVM 175 subverte essa lógica ao introduzir inovações estruturais profundas. A permissão para classes e subclasses de cotas dentro de um mesmo fundo, com patrimônios segregados, limitação de responsabilidades e políticas distintas, oferece flexibilidade, mas demanda uma complexidade de controle sem precedentes. A supervisão de compliance não pode mais ser holística, precisa ser granular, assegurando a correta segregação patrimonial, aplicação de taxas e aderência às políticas de cada classe individualmente.
A redefinição do gestor e do administrador como “prestadores de serviços essenciais”, com responsabilidades diretas e mais horizontalizadas perante o fundo, é outra mudança sísmica. O gestor assume explicitamente a responsabilidade pelo enquadramento da carteira, monitoramento de limites e, crucialmente, pela contratação e fiscalização de outros prestadores, como distribuidores.
Essa nova arquitetura impacta diretamente as práticas de compliance. A função dentro da gestora expande seu escopo dramaticamente. Não basta mais monitorar diretrizes de investimento, é preciso realizar due diligence em terceiros, conhecer efetivamente parceiros e prestadores, supervisionar contratos sob a ótica regulatória e monitorar continuamente a conformidade de prestadores contratados – tarefas antes mais concentradas no administrador.
A Resolução CVM 175 exige, ainda, um fortalecimento robusto dos controles internos e da gestão de riscos. A obrigatoriedade de o gestor realizar testes de estresse periódicos e elaborar planos de ação concretos para reenquadramento da carteira eleva o papel do compliance. A área deve agora avaliar a adequação das metodologias de teste, a razoabilidade dos cenários e a factibilidade dos planos de ação, exigindo um entendimento mais profundo de modelagem de riscos.
A transparência é outro pilar reforçado, com implicações diretas para o compliance. A exigência de divulgação segregada das taxas (administração, gestão, distribuição) e, notavelmente, a informação sobre se as políticas de remuneração consideram a aderência às normas de compliance, confere à função um potencial de influência cultural significativo.
O compliance torna-se peça-chave na validação da clareza e precisão das informações prestadas aos investidores, incluindo a definição do público-alvo para cada classe ou subclasse, apoiando indiretamente o processo de suitability na origem. O dever fiduciário, agora explicitamente codificado no artigo 106 da referida resolução, fornece ao compliance uma base regulatória ainda mais sólida para avaliar decisões sob a ótica do melhor interesse do cotista, transcendendo a mera checagem de regras.
Embora a figura do diretor de compliance já existisse (Resolução CVM 21), a Resolução CVM 175 amplia exponencialmente o universo de regras, riscos e procedimentos sob sua supervisão. A complexidade da nova dinâmica entre gestor e administrador, os controles para classes ou subclasses, as novas responsabilidades do gestor e as exigências de transparência aumentam a visibilidade e a accountability desse profissional.
A implementação, contudo, não é isenta de desafios. A necessidade de revisão de sistemas, processos e documentação, aliada aos custos de adaptação tecnológica e qualificação de pessoal, impõe barreiras, especialmente para instituições menores, que podem recorrer a controles manuais ou terceirização, exigindo, neste último caso, uma supervisão rigorosa do compliance ao contratante. Os prazos de adaptação adicionam pressão.
Em suma, a Resolução CVM 175 não é apenas uma nova regra, é um catalisador para a modernização e profissionalização da indústria de fundos. Ela consolida o compliance como um pilar estratégico indispensável, intrinsecamente ligado à governança, à gestão de riscos e à proteção do investidor.
As instituições que abraçarem essa transformação, investindo em tecnologia, processos robustos e na capacitação de suas equipes de compliance, estarão não apenas em conformidade, mas melhor posicionadas para navegar no novo ambiente regulatório, gerar confiança e prosperar no mercado de fundos brasileiro. A era do compliance como função acessória terminou, sua elevação estratégica é um caminho sem volta.