O setor automotivo foi fortemente impactado nos últimos anos pelo entendimento da Secretaria da Receita Federal em decorrência da publicação do Decreto 10.493, de 23 de setembro de 2020. Segundo a RFB, apenas após a publicação deste normativo é que estaria validada a aplicação de incentivo tributário de desoneração das importações de produtos automotivos advindos do Paraguai.
Como resultado, a RFB passou a desconsiderar a benesse tributária relativa ao Imposto de Importação (II) e ao Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) que há anos vinha sendo adotada pelos contribuintes importadores das referidas mercadorias, passando a exigir o recolhimento dos tributos não pagos nos últimos cinco anos sobre as importações de autopeças realizadas antes da publicação do Decreto 10.493/2020 por meio de autuações que somavam grande monta.
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A discussão decorria da desconsideração do Acordo de Complementação Econômica 18 (ACE 18) ao comércio de autopeças entre Brasil e Paraguai, que desde 1992 vinha sendo aplicado pelos contribuintes para realizar importações com redução da alíquota de IPI e II à alíquota zero.
Por meio do ACE 18, os países do Mercosul estabeleceram um Programa de Liberalização Comercial, eliminando a cobrança de imposto de importação entre si. À época da edição do referido ACE 18, já havia acordos específicos vigentes entre esses países, que estabeleciam e regulamentavam benefícios concedidos a setores e produtos específicos. A exemplo desses acordos, destacam-se os ACE 2 e ACE 14, firmados para liberação econômica de produtos de diversos setores, como o automotivo, entre Brasil e Uruguai e Argentina e Brasil, respectivamente.
Embora a edição do ACE 18 seja posterior, estes benefícios permaneceram válidos e vigentes, sendo ressalvados pelo acordo internacional que expressamente determinou que os acordos de complementação econômica previamente existentes fossem regidos pelas normas próprias.
Porém, com relação às importações de componentes automotivos vindos do Paraguai, o ACE 18 não trouxe qualquer restrição à aplicação das desonerações sobre as barreiras alfandegárias. A partir daí, as empresas do setor automotivo passaram a importar autopeças provenientes do Paraguai, e assim seguiram por quase três décadas, considerando os benefícios previstos no acordo, tendo importado e desembaraçado normalmente seus produtos.
Contudo, em 2019, referido cenário começou a mudar. Embora o ACE 18 não preveja limitação expressa às importações de produtos automotivos oriundos do Paraguai, a RFB publicou a Notícia Siscomex Importação 30, em 28 de junho de 2019, esclarecendo entender que o ACE 18 não se aplicaria ao setor automotivo e açúcar.
Com relação aos produtos automotivos entre Brasil e Paraguai, a RFB esclareceu que, diferentemente do que se verifica, nas disposições do ACE 14 e do ACE 2, não haveria acordo específico para o setor automotivo firmado entre Brasil e Paraguai que regesse as importações entre os países. Como consequência, aos produtos importados do Paraguai não seria aplicável a preferência tarifária do ACE 18, mas sim o regime normal de tributação para II e IPI.
Houve então nova manifestação da RFB via Notícia Siscomex Importação 34, de 28 de setembro de 2019. Dessa vez, a RFB informou que o alcance do ACE 18 estava em estudo e enquanto não concluído, estaria suspensa a orientação firmada na Notícia Siscomex 30/2019.
Quase um ano depois, em 23 de setembro de 2020, foi publicado o Decreto 10.493, que expressamente afastou as barreiras alfandegárias na importação de produtos automotivos advindos do Paraguai, o que levou a RFB passou a sustentar que a desoneração tributária dessas operações seria aplicável apenas a partir desta data.
Em decorrência, a RFB passou a questionar as importações de produtos automotivos provenientes do Paraguai ocorridas sob amparo do ACE 18, cobrando o II e o IPI não recolhidos nos cincos anos anteriores ao Decreto 10.493/2020.
O novo entendimento da RFB, após quase 30 anos da internalização do ACE 18 na legislação brasileira, acabou por impactar fortemente o setor automotivo.
Segundo dados divulgados pelos Ministérios da Economia e das Relações Exteriores[1], à época da publicação do Decreto10.493/2020, “o comércio de produtos automotivos entre Brasil e Paraguai [vinha] cresc[endo] consideravelmente na última década, sobretudo em função das exportações brasileiras de automóveis e das importações brasileiras de autopeças (principalmente de chicotes elétricos)”.
Para se ter ideia desse impacto, é importante pensar no volume de produtos automotivos importados do Paraguai. De acordo com a nota conjunta divulgada pelos ministérios, somente em 2019 essas importações somaram US$ 235 milhões.
A aplicação de II e IPI sobre operações dessa grandeza gerou um cenário de desafios e incertezas para o setor. A mudança de entendimento da RFB após tantos anos afrontou fatalmente os princípios da confiança legítima do contribuinte e da segurança jurídica do fato.
Segundo informações do governo[2], “a celebração do acordo automotivo bilateral com o Paraguai marcou um importante movimento em direção de uma consolidação da política automotiva no âmbito do Mercosul”, mas a mudança de entendimento da RFB com a cobrança imediata da margem de preferência de 100% contribuiria para um retrocesso no setor.
A ausência de questionamento pela RFB acerca da tributação preferencial pelo ACE 18 sobre essas operações ao longo das últimas três décadas pode ser entendida como uma prática reiterada da Administração Pública, que adquire força de norma complementar e, consequentemente, constitui direito do contribuinte importador. Este fato, por si só, impossibilitaria a aplicação retroativa da norma para casos constituídos sob fatos jurídicos perfeitos, acabados e repercutidos no passado.
Das informações públicas disponibilizadas[3], 17 contribuintes enfrentaram o contencioso administrativo. Embora os argumentos dos contribuintes fossem bons, apenas um desses contribuintes garantiu a vitória ainda em primeira instância administrativa. Desse modo, veja-se que, em quase a totalidade dos casos, a cobrança de tributos nessas operações prevalecia.
Tal cenário começou a mudar apenas no final de 2023 pois, com a crise no setor automotivo gerada pela cobrança do crédito tributário decorrente das importações ocorridas no passado, o Poder Executivo atribuiu ao tema caráter de relevância e urgência e editou a Medida Provisória 1.201, de 21 de dezembro de 2023 (MP 1.201/2023), que concedeu remissão total dos créditos tributários relativos ao II e ao IPI.
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Referida norma possuía prazo de vigência de sessenta dias, tendo sido prorrogada por igual período pelo Congresso Nacional. Apesar de positiva, a MP 1.201/2023 caducou em 30 de maio de 2024, trazendo, mais uma vez, instabilidade ao setor automotivo, na medida em que os créditos tributários em discussão nos contenciosos tributários passaram novamente a ser exigidos.
Apenas em 24 de julho de 2024 que a disputa entre RFB e contribuintes teve finalmente um desfecho com a edição, pela Coordenadoria-Geral de Administração do Crédito Tributário (CORAT), do Ato Declaratório Executivo Corat 11 (ADE Corat 11/2024), que concedeu remissão total à exigência de II e ao IPI dos 17 contribuintes em disputa administrativa. Estima-se que a RFB tenha renunciado a cerca de R$ 503 milhões (valores de 2022, quando da lavratura dos autos de infração), segundo informações do governo[4].
Diante do conturbado e incerto cenário enfrentado pelo setor automotivo em decorrência das mudanças de entendimento da RFB em relação à aplicação do ACE 18 para as importações de produtos automotivos do Paraguai, o desfecho favorável obtido com a concessão da remissão total dos créditos tributários aos contribuintes envolvidos, por meio do ADE Corat 11/2024, representa uma vitória definitiva dos contribuintes, trazendo segurança jurídica para o setor automotivo com relação ao tema.
[1] Nota à Imprensa nº 27/2020, disponível em <https://www.gov.br/mre/pt-br/canais_atendimento/imprensa/notas-a-imprensa/2020/assinatura-do-acordo-de-complementacao-economica-n-74-e-do-acordo-automotivo-entre-o-brasil-e-o-paraguai-nota-conjunta-entre-o-ministerio-das-relacoes-exteriores-e-o-ministerio-da-economia> acesso em 14/02/2025.
[2] “MP prevê perdão de tributos sobre produtos automotivos do Paraguai”, disponível em <https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2023/12/27/mp-preve-perdao-de-tributos-sobre-produtos-automotivos-do-paraguai> acesso em 14/02/2025.
[3] Informações obtidas com base nos processos administrativos listados no art. 1º do Ato Declaratório Executivo Corat nº 11/2024, em cruzamento com os andamentos processuais públicos, disponibilizados no site do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf).
[4] “MP prevê perdão de tributos sobre produtos automotivos do Paraguai”, disponível em <https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2023/12/27/mp-preve-perdao-de-tributos-sobre-produtos-automotivos-do-paraguai> acesso em 14/02/2025.