O Regulamento Sanitário Internacional 2005 (RSI) é o instrumento de direito internacional da Organização Mundial da Saúde (OMS) que estabelece as diretrizes para seus Estados-membros no manejo de eventos de saúde pública com atravessamento de fronteiras.
Embora surtos de doenças e outros riscos à saúde pública sejam imprevisíveis, a pandemia da Covid-19 expôs as fragilidades da governança internacional em saúde, particularmente no que diz respeito à prevenção, preparação e resposta coordenada às emergências sanitárias previstas no RSI.
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Em especial pela ausência de mecanismos robustos de monitoramento, a dependência de autoavaliações voluntárias e a falta de consequências claras para o descumprimento das obrigações desse instrumento, o RSI revelou-se insuficiente para garantir ações eficazes e tempestivas diante de uma crise de saúde em escala global.
Em resposta às deficiências evidenciadas, a OMS em 2021 incumbiu o um grupo de trabalho da avaliação de melhorias ao RSI e estabeleceu o Órgão de Negociação Intergovernamental (INB) para desenvolver um novo instrumento sobre pandemias.
Após mais de três anos de discussões, o INB apresentou o texto preliminar do Acordo de Pandemia da OMS à 78ª Assembleia Mundial da Saúde, o qual foi aprovado em 20 de maio de 2025, sem votos contra. Atualmente o texto encontra-se em processo de abertura para assinaturas e entrará em vigor quando for ratificado por pelo menos 60 países.
No referido texto preliminar há a criação de diversos mecanismos de compliance, em resposta às deficiências de monitoramento sanitário existentes no RSI, com evidente inspiração nos tratados multilaterais de direito ambiental, como o Acordo de Paris.
A redação em comento adota mecanismos facilitadores de implementação, como revisões técnicas periódicas, comitês de compliance não punitivos, apoio técnico e financeiro aos países em desenvolvimento para atingir uma abordagem mais dinâmica, colaborativa e eficaz para lidar com esses desafios globais.
Avanços do Acordo de Pandemia: sistemas de compliance
Os sistemas de compliance previstos em acordos ambientais multilaterais, à exemplo do Acordo de Paris, combatem por meio de abordagens cooperativas, sintomas e as causas do descumprimento das obrigações pelos seus Estados membros, estabelecendo procedimentos que buscam enfrentar as questões estruturais que possam gerar a não conformidade a esses acordos.
O Acordo de Pandemia ao contrário do RSI, estabelece um Comitê de Implementação e Compliance, com natureza facilitadora, transparente, cooperativa, não punitiva e adversarial, que pode exarar recomendações e apoiar os países na sua implementação. Prevê a criação do envio relatórios periódicos e de um mecanismo financeiro coordenado para apoiar Estados em desenvolvimento.
Além disso, estabelece o Sistema de Acesso e Repartição de Benefícios, com cláusulas contratuais vinculantes para fabricantes, garantindo acesso equitativo à vacinas e insumos durante pandemias.
As metas e obrigações previstas são, em geral, de cunho autoespecífico, de acordo com a realidade de cada Estado, estabelecendo algumas diretrizes genéricas específicas como fortalecer sistemas de saúde, compartilhar patógenos e benefícios e garantir financiamento sustentável.
Também não previsto no RSI, o Acordo de Pandemia, cria a Conferência das Partes (COP), cujo objetivo principal é a promoção do diálogo multilateral, a partir de reuniões regulares dos Estados membros. A COP é responsável pela revisão a cada cinco anos do Acordo de Pandemia, à exemplo do que ocorre no Acordo de Paris, e é o fórum de apresentação e avaliação dos relatórios periódicos dos Estados e da OMS. Tais relatórios são transparentes e disponibilizados online. Além disso, a Conferência poderá adotar medidas para ajudar os países, especialmente aqueles em desenvolvimento, a cumprir suas obrigações.
Ademais, a cooperação e equidade são princípios centrais da implementação do Acordo de Pandemia, promovendo a abordagem “One Health” com colaboração multissetorial e criação da Rede Global de Cadeia de Suprimentos e Logística.
Nota-se, portanto, que o Acordo de Pandemia, apesar de ser um instrumento com objetivos diferentes do RSI, haja vista seu recorte mais específico à pandemias, apresenta diversos avanços em seu texto preliminar no sentido do estabelecimento de um sistema robusto de compliance, numa tentativa de facilitar a implementação e monitoramento de diretrizes globais mais eficientes às respostas de crises de saúde em escala.
Deficiências do Acordo de Pandemia
A inspiração em modelos ambientais deve ser precedida de cautela ao transpor estruturas de compliance desses regimes para o campo da saúde. A lógica de bens públicos globais difere substancialmente: enquanto o meio ambiente envolve externalidades difusas e metas de longo prazo, as pandemias exigem respostas imediatas, coordenação ágil e forte capacidade institucional. A ausência de sanções, por exemplo, pode ser interpretada como fragilidade, especialmente em contextos de baixa confiança institucional.
Ainda que os mecanismos não punitivos e facilitadores possam ser eficazes em certa medida, é razoável ponderar que essa abordagem pode não ser adequada ao contexto das emergências sanitárias. Isso porque a ausência de mecanismos formais de responsabilização pode ser um problema, especialmente em situações de negligência estatal.
Além disso, a proposta da OMS parece pressupor um ambiente de cooperação ideal, desconsiderando que a saúde global é profundamente marcada por disputas geopolíticas, interesses comerciais e assimetrias estruturais.
Ademais, muito embora trate-se de texto preliminar, muitos mecanismos do Acordo de Pandemia dependem de regulamentação futura e estão condicionados à disponibilidade de recursos.
Com relação ao sistema de transparência comum, não há o estabelecimento de um sistema padronizado de medição, relato e verificação para garantir comparabilidade entre os estados aderentes, o que compromete as avaliações dos relatórios periódicos de implementação do instrumento. Além disso, não há um mecanismo claro de avaliação coletiva de metas, apenas a revisão do tratado pela COP a cada cinco anos.
Outro ponto importante, é que no Acordo de Pandemia, é disposto que as metas dos Estados membros são autoespecificadas, mas sem diretrizes claras de estrutura ou ambição mínima. Da mesma forma, apesar da criação de um comitê de conformidade, não são estabelecidas as suas regras de funcionamento de forma clara.
Por fim, relativo ao financiamento e capacitação, não há uma definição de obrigações de relato e mobilização de financiamento climático por países desenvolvidos prevista, apenas a criação de um Mecanismo Financeiro Coordenador, mas sem metas de financiamento nem obrigações de transparência financeira.
Conclusão
Apesar do grande avanço em relação ao direito internacional vigente na pandemia da Covid-19, a redação do Acordo de Pandemia apresenta lacunas importantes. Para fortalecer sua efetividade, seria recomendável a inclusão de diretrizes mínimas para metas nacionais, a definição clara dos procedimentos do Comitê de Conformidade e a adoção de um sistema padronizado de verificação e avaliação periódica.
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Além disso, a previsão de compromissos financeiros mais robustos e transparentes por parte dos países desenvolvidos poderia garantir maior equidade e sustentabilidade na implementação.
Vale apontar que o acordo não possui a previsão de sanções claras ao seu descumprimento, o que pode vir a ser problemático. Embora os mecanismos não punitivos sejam eficazes em certa medida, a experiência do RSI demonstra que, sem incentivos claros ou consequências pelo descumprimento, a adesão voluntária tende a ser frágil em contextos de crise.