Em 2012, trabalhando com empresas do setor de bebidas e com o Instituto Brasileiro de Ética Concorrencial (ETCO), tive contato com dados que me marcaram profundamente: a extensão do mercado de álcool ilegal no Brasil.
O álcool ilegal é aquele produzido, distribuído ou comercializado fora das normas estabelecidas pelo Estado, abrangendo o contrabando e o produto adulterado ou falsificado. A categoria inclui desde bebidas alcoólicas que entram no país sem pagamento de impostos até aquelas manipuladas com substâncias nocivas ou envasadas de forma clandestina, em embalagens reaproveitadas sem controle sanitário. É um fenômeno que compromete a arrecadação pública, distorce a concorrência, fragiliza setores regulados e, sobretudo, representa grave risco à saúde da população.
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Treze anos depois, em 2025, o Brasil enfrenta uma crise aguda de intoxicações por metanol. Não é um fenômeno novo, mas a escala e a gravidade atuais revelam vulnerabilidades na cadeia de produção, distribuição e descarte de embalagens. E é neste ponto que a discussão sobre economia circular ganha força, para além da pauta ambiental, como medida concreta de saúde pública e proteção ao consumidor.
A emergência sanitária levou o Ministério da Saúde a instalar uma Sala de Situação para monitorar casos de intoxicação. O governo estruturou um estoque estratégico de ampolas de etanol farmacêutico em hospitais universitários, acionou a Rede Nacional de Laboratórios de Vigilância Sanitária para reforçar diagnósticos e pediu apoio da Organização Pan-Americana da Saúde para o fornecimento do antídoto fomepizol.
Ao mesmo tempo, intensificaram-se campanhas de alerta à população, com orientações para verificar a procedência das bebidas, desconfiar de preços muito baixos e evitar o consumo de produtos sem rótulo ou de origem desconhecida. Essa resposta articulada é fundamental, mas também expõe um ponto cego: enquanto discutimos tratamentos e notificações, pouco se fala sobre como as garrafas vazias, em circulação irregular, alimentam o próprio mercado que gera as intoxicações.
Catadores e até funcionários de estabelecimentos chegam a revender garrafas originais para falsificadores, que as enchem com líquidos adulterados, muitas vezes à base de metanol. Em plataformas digitais, não é difícil encontrar lotes de garrafas vazias à venda.
Essa realidade é agravada pela ausência de uma logística reversa robusta no canal de bares, restaurantes e hotéis. Enquanto embalagens de cerveja retornáveis seguem fluxos relativamente organizados, os destilados, em especial aqueles de maior valor agregado, circulam sem comprovação de destinação final. Na prática, a garrafa, um dos símbolos da economia circular, se converte em vetor de risco quando não há rastreabilidade.
É importante deixar claro que não se trata, de forma alguma, de criminalizar o trabalho dos catadores ou das cooperativas de reciclagem, que desempenham papel essencial na cadeia da circularidade. O problema está na falta de regras claras e mecanismos de controle, que permitem que embalagens autênticas se tornem matéria-prima para o mercado ilegal.
Se olharmos para a economia circular como parte da resposta à crise, a formulação de medidas específicas para reduzir a reutilização criminosa de garrafas poderia avançar em quatro frentes principais, que dialogam diretamente com a agenda de integridade de mercado.
A primeira seria a obrigatoriedade de bares, restaurantes, hotéis e distribuidores registrarem a destinação final das garrafas de destilados, em linha com o que já ocorre em setores que gerenciam resíduos perigosos. A segunda medida envolveria a padronização da inutilização das embalagens não retornáveis, garantindo que sejam descartadas de forma segura e impedindo seu reuso irregular.
A terceira frente recomendaria a implantação de modelos de depósito e retorno, inspirados em experiências internacionais de caução, com a realização de projetos-piloto no Brasil que integrem cooperativas e assegurem remuneração justa aos catadores. Por fim, seria recomendável incentivar a adoção de tecnologias de serialização, como QR codes ou marcações antifraude, capazes de distinguir garrafas retornáveis das descartáveis e ampliar a rastreabilidade ao longo da cadeia.
Proteção ao consumidor como prioridade
A orientação ao consumidor é indispensável, mas insuficiente. Em um país marcado pela informalidade, a responsabilidade não pode recair apenas sobre quem compra. Economia circular, neste caso, é política pública de saúde: embalagens rastreadas de ponta a ponta reduzem estruturalmente o espaço de atuação do álcool ilegal.
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A crise do metanol em 2025 reabre uma discussão que começou para mim em 2012 e que precisa ser enfrentada de forma intersetorial. Governos podem fortalecer a regulação e a fiscalização sobre embalagens; a indústria de bebidas e de vidro pode investir em rastreabilidade; o varejo on-trade deve assumir responsabilidade sobre a destinação final; cooperativas devem ser incluídas em modelos de logística reversa com dignidade e remuneração justa.
O tema do álcool ilegal sempre esteve associado a três dimensões: risco ao consumidor, crime organizado e perda de arrecadação. Em 2025, é preciso acrescentar uma quarta: circularidade desordenada.