Especialista explica como o cérebro em desenvolvimento, a linguagem e as emoções influenciam na chamada amnésia infantil e por que esquecer também faz parte do crescer. Saúde, Infância, memória, Neurologia CNN Brasil
Mesmo vivendo momentos marcantes nos primeiros anos de vida, como aprender a andar, balbuciar as primeiras palavras ou reconhecer o rosto da mãe, quase nenhum adulto guarda lembranças reais dessa fase. É como se os primeiros capítulos da história estivessem “apagados”. Esse fenômeno intrigante tem nome: amnésia infantil.
Embora seja comum, a amnésia infantil ainda levanta muitas perguntas, inclusive entre cientistas. Para entender o que a neurociência sabe sobre o assunto, a pediatra Layla Faleiros esclarece por que a mente bloqueia ou sequer registra memórias dos primeiros anos de vida. “A amnésia infantil é a falta de capacidade de nós adultos relembrarmos as memórias de infância, especialmente antes dos 4 anos de idade”, afirma.
O que é amnésia infantil?
A amnésia infantil é um fenômeno natural do desenvolvimento humano. Diferente do simples esquecimento, ela representa a incapacidade de armazenar e recuperar memórias autobiográficas antes de uma certa idade, em geral, entre 3 e 4 anos.
Mesmo que alguém diga se lembrar do próprio nascimento ou do primeiro aniversário, cientistas afirmam que essas recordações são provavelmente construções, influenciadas por relatos familiares, fotos ou imaginação. Isso acontece porque, nessa fase, o cérebro ainda está em pleno desenvolvimento.
Cérebro infantil
Segundo a pediatra, o grande motivo por trás da amnésia infantil está na maturação cerebral. “Infelizmente, com essa pouca idade, não temos todos os mecanismos de memória bem desenvolvidos. Por exemplo, o hipocampo, que é essencial para consolidar memórias, ainda não está bem formado. O córtex pré-frontal só está formado entre 3 e 5 anos”, explica Layla.
O hipocampo é a região responsável por transformar memórias de curto prazo em memórias de longo prazo. Já o córtex pré-frontal, crucial para raciocínio e narrativa, ajuda a organizar as lembranças em forma de história. Sem essas estruturas maduras, as experiências não são registradas de forma permanente.
Além disso, nessa fase ocorre a chamada neurogênese intensa, um período de grande produção de novos neurônios e reorganização de conexões cerebrais. Ou seja, as redes que registram as vivências ainda estão sendo construídas, e, muitas vezes, interferem nas anteriores.
Linguagem e memória
Outro fator essencial é a linguagem. É por meio das palavras que as experiências são transformadas em histórias que podem ser contadas. Na primeira infância, a linguagem ainda está em formação, o que impede a construção de uma memória autobiográfica.
“O bebê também não domina a linguagem ainda, o que dificulta transformar vivências em memórias. Por mais que tenhamos experiências, elas não ficam acessíveis de forma consciente quando estamos mais velhos”, esclarece a pediatra.
Isso significa que a criança vive intensamente, mas ainda não consegue registrar em palavras aquilo que sente, o que compromete a lembrança consciente no futuro.
O corpo lembra
Embora não seja possível lembrar dos primeiros anos de vida, isso não significa que eles passam despercebidos pelo cérebro. Nessas fases, predominam as chamadas memórias implícitas, aquelas ligadas a sensações, reações emocionais e vínculos afetivos.
“Nos primeiros anos, predominam as memórias implícitas, que são as inconscientes, relacionadas às sensações, emoções e respostas corporais. O bebê reconhece o rosto da mãe, se sente seguro, mas não lembra desses eventos de modo consciente. É como se fosse gravado no corpo”, diz Layla.
É por isso que um bebê pode se acalmar no colo de alguém conhecido, mesmo sem “lembrar” dessa pessoa. Ele não recorda, mas reconhece.
O papel do ambiente e das emoções
Mesmo sem memórias narrativas, tudo o que é vivido na infância deixa marcas profundas no desenvolvimento emocional. Um ambiente acolhedor fortalece estruturas como o hipocampo e a amígdala, áreas ligadas à memória e à regulação emocional.
“O ambiente familiar e emocional exerce forte influência. Um ambiente estável, com vínculo seguro e estímulos positivos, favorece o amadurecimento do cérebro. Por outro lado, estresse e insegurança afetiva podem atrapalhar a consolidação de memórias e conexões neurais”, explica.
Assim, aquilo que não é lembrado conscientemente pode continuar vivo no comportamento, inclusive na forma como reagimos ao mundo adulto.
O que a ciência ainda não sabe
A ciência já avançou, mas ainda existem questões em aberto. Alguns adultos afirmam ter lembranças de momentos muito precoces, e há debate sobre até que ponto essas memórias são reais ou reconstruídas.
“A forma como as memórias são estabelecidas na infância pode variar de cultura para cultura. Em muitos casos, adultos relembram fragmentos de eventos antes dos 2-3 anos, mas há alto risco dessas memórias serem apenas reconstruções posteriores, influenciadas por outras pessoas”, pontua a especialista.
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