Em 4 de fevereiro de 2025, a 6ª Turma do Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que a injúria racial se destina à proteção de grupos historicamente discriminados e, portanto, não se aplica a ofensas dirigidas a pessoas brancas por sua condição racial. A decisão fundamenta-se na compreensão de que o racismo é um fenômeno estrutural e, por isso, a interpretação das normas deve considerar a realidade concreta, afastando a tese de “racismo reverso”.
Contudo, a questão ainda suscita debates no meio jurídico. Exemplo emblemático foi a posição inicialmente adotada pelo Ministério Público e pelo Tribunal de Justiça do Estado de Alagoas, que reconheceram a possibilidade de “racismo reverso”. Esse cenário evidencia a necessidade de um aprofundamento interpretativo da Lei Caó, prevenindo lapsos baseados em interpretações equivocadas.
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Assim, este texto se propõe a contribuir para o debate, esclarecendo aspectos interpretativos da Lei Caó, de forma a mitigar desatinos resultantes de leituras superficiais.
A que serve a Lei Caó?
Em 8 de agosto de 1988, no centenário da abolição da escravatura, o deputado Carlos Alberto Caó, militante do movimento negro e então parlamentar pelo PDT do Rio de Janeiro, apresentou o PL 668/1988, que mais tarde daria origem à Lei Caó, norma que criminaliza atos resultantes de preconceito de raça ou de cor.
Nos Anais da Câmara dos Deputados, a justificativa do PL 668/1988 enfatizava que “o negro deixou, sem dúvida, de ser escravo, mas não conquistou a cidadania”, destacando que “o negro está privado do direito à cidadania em uma prática odienda do racismo”. À época, práticas racistas eram enquadradas como mera contravenção penal, nos termos da Lei 1.390/1951, o que impedia uma punição efetiva.
Com a promulgação da Lei Caó, estabeleceu-se um marco jurídico essencial no combate ao racismo. No entanto, a prática racista continuou impune pelos anos que se sucederam, demandando sucessivas alterações legislativas. Dentre as principais modificações, destacam-se as mais recentes: a inclusão do art. 2-A, que tipifica a injúria racial como crime de racismo; a inclusão do art. 20-C, que será abordado mais adiante; e a classificação como crime de ação penal pública incondicionada.
Convém ressaltar que o Brasil conferiu status de emenda constitucional à Convenção Interamericana contra o Racismo, a Discriminação Racial e Formas Correlatas de Intolerância, a qual, já em seus considerandos, reconhece que as vítimas dessas formas de discriminação nas Américas incluem, entre outros, afrodescendentes, povos indígenas e minorias raciais e étnicas, bem como grupos cujos direitos são cerceados em razão de sua ascendência ou origem nacional.
Essa trajetória legislativa, cumulada com o atual ordenamento, evidencia que a criminalização do racismo foi pensada para proteger grupos historicamente discriminados, como a população negra, em razão do legado escravocrata e da persistência de estruturas racistas no Brasil. É isso o que preceitua a boa interpretação teleológica da norma.
Injúria racial: elementos e configuração
Mas em que consiste a injúria racial? A injúria racial exige não apenas a intenção de ofender, mas um elemento subjetivo específico: o propósito discriminatório baseado na raça, cor, etnia, religião ou origem da vítima.
Nesse sentido, expressões ofensivas com viés discriminatório têm o condão de violar a dignidade da vítima, configurando injúria racial, ainda que não mencionem explicitamente a raça, mas que se caracterizam enquanto ofensas discriminatórias praticadas em razão da raça.
Quanto a isso, a jurisprudência tem reconhecido que o racismo à brasileira muitas vezes se manifesta de forma implícita, por meio da subordinação simbólica e da reprodução de estereótipos. O STF, no julgamento do Habeas Corpus 154.248, destacou que o racismo pode se revelar por “fatores ideológicos que constroem a inferioridade a partir de manifestações de desprezo, ódio ou qualquer outra forma de violência”.
Entretanto, é evidente que o posicionamento jurisprudencial mencionado trata especificamente do racismo e não avançou, como seria desejável, na análise mais profunda da injúria racial, de modo a dar os contornos aos casos de ofensas que não mencionam diretamente a raça, mas que têm, evidentemente, cunho racial e discriminatório.
Ademais, é válido ressaltar que avanços significativos na compreensão desse crime ainda são dificultados pela persistência de debates infundados, como a tese do chamado “racismo reverso”.
Diante disso, torna-se imperativo entender a injúria racial, considerando os fatores ideológicos que sustentam a inferiorização de grupos racializados por meio de manifestações simbólicas de desprezo, ódio e outras formas de violência.
A esse respeito, a Lei Caó desempenha um papel crucial, especialmente por meio de dispositivos como o art. 20-C, que estabelece:
“Art. 20-C. Na interpretação desta Lei, o juiz deve considerar como discriminatória qualquer atitude ou tratamento dado à pessoa ou a grupos minoritários que cause constrangimento, humilhação, vergonha, medo ou exposição indevida, e que usualmente não se dispensaria a outros grupos em razão da cor, etnia, religião ou procedência”.
O artigo explicitamente orienta que, na aplicação da lei, o magistrado deve considerar como discriminatório qualquer tratamento que cause constrangimento ou humilhação a uma pessoa, e que não seria dispensada a membros de outros grupos.
Em suma, o dispositivo destina-se à interpretação hermenêutica da Lei Caó, estabelecendo que, para a caracterização de determinados atos como crime — incluindo a injúria racial —, é necessário avaliar se o comportamento ofensivo, por sua natureza e impacto, revela discriminação dirigida a grupos vulnerabilizados em razão de raça, etnia ou origem.
Portanto, para além do tipo penal previsto no art. 2-A — que tipifica a injúria racial como o ato de “injuriar alguém, ofendendo-lhe a dignidade ou o decoro, em razão de raça, cor, etnia ou procedência nacional” —, o art. 20-C reforça a necessidade de considerar contextos discriminatórios mais amplos, inclusive aqueles sustentados por estereótipos e práticas implícitas.
Desse modo:
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Conforme destacado pela Convenção Interamericana contra o Racismo, as vítimas de discriminação incluem afrodescendentes, povos indígenas, minorias raciais e étnicas, além de outros grupos cuja ascendência ou origem nacional acarreta cerceamento de direitos;
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Conforme o art. 2-A da Lei Caó, constitui crime de injúria racial a injúria que ofenda a dignidade ou o decoro de alguém com base em raça, cor, etnia ou origem; e
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E, conforme o art. 20-C, o magistrado deve reconhecer como discriminatório qualquer ato ou tratamento que cause constrangimento a membros de grupos minoritários em situações que não seriam dirigidas a outros grupos em razão de raça ou cor.
A partir disso, conclui-se: a injúria racial não se limita a ofensas que mencionem explicitamente características físicas ou culturais de pessoas negras, como a cor da pele, cabelo, nariz ou boca.
É essencial reconhecer que ela também abrange ofensas indiretas que, por meio de construções simbólicas e de termos carregados de preconceito, reforçam ideologias de inferiorização e subjugação racial. Essas manifestações, ainda que sutis, configuram injúria racial ao denotarem desprezo, ódio ou outras formas de violência simbólica contra pessoas negras.
Portanto, a correta compreensão do crime de injúria racial deve considerar o contexto e o propósito discriminatório subjacente, garantindo uma aplicação adequada da Lei Caó e coibindo a relativização de atos racistas pelo Poder Judiciário. Atos racistas solapam a paz das pessoas negras ao violar o exercício da liberdade de ser quem se é. Como disse Malcolm X: “Não se pode separar paz de liberdade, porque ninguém consegue estar em paz a menos que tenha sua liberdade”.