O leilão daquele que deve ser o maior terminal multipropósito do país está em uma nova temporada. O Tribunal de Contas da União (TCU) analisa a proposta de edital do Tecon Santos 10 do porto de Santos (SP), uma das etapas finais até o leilão. A corte de contas precisa se pronunciar antes da publicação do edital definitivo, mas a passagem por ela não deve ser livre de sobressaltos. Antes mesmo de sua decisão, nesta semana, um mandado de segurança buscou retroceder algumas etapas – enquanto uma medida cautelar já havia tentado suspender o leilão.
Na segunda-feira (23/7), o grupo do setor marítimo Maersk entrou com um mandado de segurança contra decisão da Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq) que limitou a participação na primeira rodada do leilão a novos players – assim, empresas que já detêm mercado em Santos ficarão de fora. O argumento para o pedido de liminar foi que a Antaq deveria ter submetido o novo desenho por nova audiência pública.
A demanda não foi aceita. “O ato administrativo impugnado ainda não se concretizou, não está produzindo efeitos jurídicos”, afirmou o juiz federal Paulo Neves Junior, 21ª Vara Cível Federal de São Paulo, ao negar o pedido na quarta (25/6). Ele ponderou que, como o caso ainda é analisado pelo TCU enquanto órgão de controle, não se justificaria “a intervenção do Poder Judiciário numa espécie de controle prévio”; e deu dez dias para Antaq fornecer informações sobre critérios aplicados.
Assim, uma resposta poderá vir pelo TCU. A expectativa do governo federal é que esse seja o maior leilão já realizado na história do setor portuário brasileiro, com investimentos de R$ 6,45 bilhões previstos e um contrato de arrendamento inicial de 25 anos. O novo terminal irá ampliar a capacidade do porto de Santos em até 50%.
No TCU, o caso está sob a responsabilidade do ministro relator Antonio Anastasia, e ainda não há previsão de julgamento. Os sinais dados pelo ministro a algumas das reações à chegada do edital modificado pela Antaq ao TCU podem indicar o entendimento dele até emitir o seu relatório, aguardado para as próximas semanas.
Mudanças no edital
O setor portuário nutre expectativa por essa decisão do TCU após uma mudança de cenário. O edital do leilão, em sua versão preliminar, não previa restrições a nenhum tipo de concorrente. Essa situação gerava preocupação no setor, especialmente pela chance de o novo terminal poder ser adquirido por uma das empresas que já administram terminais no porto de Santos e dominam esse mercado.
No início de junho, o colegiado da agência confirmou o posicionamento do diretor-geral, Caio Farias, que modificou a minuta de edital apresentada na audiência pública. Na versão atual, que aguarda decisão do TCU, a competição terá duas fases.
Na primeira, os atuais incumbentes do porto de Santos não poderão participar. Caso não haja propostas, começará então a segunda fase, na qual está liberada a participação dessas empresas.
Contudo, há uma condição. Caso a empresa vitoriosa seja uma dessas que já controlam terminais em Santos, ela deverá abrir mão do ativo que até então estava administrando. E precisa fazer isso até a assinatura do novo contrato.
As empresas que controlam terminais em Santos são a CMA-CGM, responsável por 42% da movimentação total do porto (2,3 milhões de TEUs, medida de contêiner), seguida da BTP/Maersk-MSC (34% do manejo de cargas ou 1,8 milhões de TEUs) e DP World (24% ou 1,2 milhões de TEUs). Os dados são de 2024, do estatístico aquaviário da Antaq.
No ano passado, as três empresas movimentaram, juntas, 5,3 milhões de TEUs. E o novo terminal, quando completamente instalado, irá acrescentar 3,25 milhões de TEUs à capacidade de Santos. Dessa maneira, se qualquer uma das três empresas já instaladas levar o novo terminal, facilmente controlará mais da metade da capacidade de Santos.
Concorrência
Para o professor de Direito Administrativo da Universidade de São Paulo (USP), Thiago Marrara, a minuta que está sendo avaliada pelo TCU vem em consonância com a intenção do poder concedente, o qual optou por fazer uma licitação de um novo terminal, e não em expandir os atuais.
“O interessante é que a nova minuta não afasta players verticalizados por si só”, comenta o professor em referências às empresas de transporte de cargas em navios que também administram terminais portuários. “O que ela afasta são os que já atuam no Porto de Santos”, definiu.
“Como a própria Antaq destacou, a preocupação não é tanto com a verticalização, mas com atores que já têm infraestrutura em Santos. E que, se ganharem esse novo terminal, que é muito grande e relevante, vão concentrar grande parte da infraestrutura de contêineres”, explicou.
Na avaliação do jurista, a minuta do edital visa coibir possíveis práticas advindas de abuso de posição dominante. “Essa versão estimula a entrada de novos agentes econômicos no porto de Santos, aumentando a competição e beneficiando todos que precisam utilizar aquela infraestrutura. Porque se alguém que já está vence a licitação, a chance de abusar é muito grande”.
Olhar semelhante apareceu, durante a fase de audiência pública, no parecer da Subsecretaria de Acompanhamento Econômico e Regulação (SEAE), ligada à Fazenda. O documento mencionava que o órgão “observa com cautela” o que chamou de “riscos inerentes ao excesso de concentração de mercado em estruturas verticalizadas” no porto de Santos, “em específico no que tange à adjudicação do arrendamento à terminais de carga conteinerizada já constituídos”.
Reações ao edital
O novo formato da competição não agradou a todos e gerou reações rápidas. Um dia após o processo chegar ao TCU, o Ministério Público de Contas (MPTCU) pediu a suspensão do leilão do megaterminal, por medida cautelar. O órgão pediu ao tribunal a averiguação de “possíveis irregularidades na condução do procedimento licitatório”.
“Essa restrição prévia e completamente genérica [de colocar duas fases na concorrência], em meu entendimento, apenas restringe de forma significativa a gama de interessados que viriam a contribuir com a competição e com a valorização do ativo na licitação”, escreveu no pedido o subprocurador-geral do MPTCU, Lucas Rocha Furtado.
Dois dias depois, o pedido de medida cautelar foi indeferido pelo ministro relator, Antonio Anastasia. “Entendo adequado que a Agência realize estudos sobre o mercado a que lhe compete regular, adotando as providências cabíveis”, escreveu o ministro.
O governo de São Paulo também expressou discordância com as salvaguardas adotadas na nova minuta de edital. A administração enviou um ofício ao governo federal em 5 de junho, poucos dias depois da decisão de Anastasia.
“Em nossa visão, não se revela pertinente a criação de regras restritivas que esvaziam a ampla competição, impedem a participação de agentes econômicos tecnicamente qualificados na disputa pelo ativo e podem resultar na prestação de um serviço menos eficiente e mais custoso para a cadeia logística paulista”, diz o documento.
A gestão também comenta o encaminhamento dado pela Antaq ao caso, defendendo que “a análise quanto à concentração indevida do mercado por decorrência do processo licitatório deveria ser conduzida no foro apropriado, qual seja, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade)”.
Para o professor da USP, Thiago Marrara, contudo, o encaminhamento dado encontra amparo legal. “Se você abre a Lei dos Portos e a Lei da Antaq, em ambas há o dever de zelar pela concorrência, inclusive de maneira preventiva. As agências setoriais também têm esse papel”, avalia.
O que vem pela frente
O ministro Antonio Anastasia deixou claro que não entrou no caso concreto ao indeferir a cautelar pedida pelo MPTCU. Contudo, no embasamento de seu despacho, comentou que o TCU já opinou favoravelmente, no passado, a outros certames que propuseram restrições à concorrência.
“Sem qualquer prejulgamento do caso concreto ainda a ser escrutinado, cabe recordar que a imposição de barreiras à participação de players incumbentes ou a vedação à concentração de mercado no setor portuário tampouco seriam matérias inéditas a serem apreciadas pelo TCU”, argumentou.
Anastasia citou “situações semelhantes” nas quais o TCU já admitira a validade de cláusulas restritivas no edital ou condicionantes à participação de determinados operadores. No caso, acórdãos em leilões das áreas STS-08 e STS-08A e STS14 e STS14A, no próprio porto de Santos (SP), e MAC11 e MAC11A no porto de Maceió (AL). Os julgados citados foram relatados por outros ministros da corte.
No Acórdão 2287/2020, o TCU manteve restrição de participação da Suzano S.A. em licitação dos terminais STS14 e STS14A devido à alta participação de mercado resultante da operação. Se vencesse o certame, a empresa iria deter 70% do Complexo Portuário de Santos nos terminais de celulose.
“Embora possam vir a restringir a competitividade do certame, [as limitações] objetivam evitar concentração no mercado de movimentação de celulose no Porto de Santos/SP, o que está em aderência ao interesse público”, afirmou o relator desse caso, Bruno Dantas, atual presidente do TCU.
O caminho agora é o TCU se posicionar sobre o edital: concordando com o encaminhamento proposto pela Antaq ou então solicitando que a agência faça novas modificações. “Essa é a fase interna da competição. Uma vez terminada, vem a fase externa, o leilão propriamente dito”, explicou.
Seja como for, a demanda por infraestrutura no país é grande. Entidades como a Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo) e CNI (Confederação Nacional da Indústria) já demonstraram preocupação não somente com o formato do edital, mas com a possibilidade de demora na realização do leilão.
Se as reviravoltas em curso atrasarem o leilão, há ainda um risco de colapso do setor, reclamam os envolvidos. Segundo a Antaq, em 2024, a movimentação de cargas conteinerizadas foi recorde no país — 13,9 milhões de TEUs, um crescimento de 20% em relação a 2023.
Pelo cronograma do leilão, divulgado na audiência pública realizada pela Antaq, a decisão do TCU é esperada para acontecer em agosto. A expectativa do governo é que o edital seja publicado em setembro e que o leilão aconteça ainda neste ano — provavelmente em dezembro, com assinatura em meados de 2026.