A autonomia federativa brasileira, embora prevista na Constituição de 1988, enfrenta obstáculos concretos quando se trata da sua aplicação prática, principalmente no nível municipal. A descentralização de competências e responsabilidades nem sempre vem acompanhada da estrutura necessária para sua execução efetiva, o que gera disparidades no desempenho das políticas públicas em diferentes localidades.
No campo das finanças públicas, essa limitação torna-se ainda mais evidente. A proposta de reforma tributária, voltada à unificação de tributos, tem sido alvo de debates sobre seus impactos na arrecadação local. Cruz observa que mudanças no sistema fiscal podem comprometer significativamente a autonomia financeira dos municípios, afetando diretamente sua capacidade de formular e executar políticas públicas.
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Diante disso, este estudo se torna pertinente por contribuir com uma reflexão crítica sobre o federalismo brasileiro, propondo uma análise que considera não apenas a legislação, mas também as condições reais dos municípios para exercerem sua autonomia. Trata-se, portanto, de um tema estratégico para o aprimoramento da gestão pública e para a efetividade dos direitos garantidos constitucionalmente.
Dessa forma, o objetivo geral do artigo se propõe a refletir sobre os principais entraves enfrentados pelos municípios no exercício da autonomia federativa, analisando tanto os aspectos financeiros e institucionais quanto as implicações das reformas em curso e das políticas públicas descentralizadas.
Impactos das reformas fiscais na autonomia financeira
A autonomia financeira dos entes federativos é um dos pilares do federalismo brasileiro, pois está diretamente relacionada à capacidade de os estados e municípios definirem prioridades e atenderem às demandas locais. No entanto, as propostas recentes de reforma fiscal, ao alterarem profundamente a estrutura de arrecadação, suscitam preocupações quanto ao reequilíbrio do pacto federativo e à manutenção da autonomia orçamentária dos governos subnacionais.
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Com a substituição de tributos próprios como o ICMS e o ISS pela criação do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), os entes federativos perdem o controle direto sobre a arrecadação e a legislação desses impostos, o que representa uma mudança significativa na forma como estados e municípios exercem sua autonomia fiscal.
Essa concentração da arrecadação em um órgão gestor central pode comprometer a flexibilidade dos entes para lidar com suas especificidades econômicas.
Desafios na implementação de políticas descentralizadas
A descentralização das políticas públicas tem sido uma estratégia adotada para aproximar as ações governamentais das demandas locais, fortalecendo a autonomia dos entes subnacionais. No entanto, no contexto brasileiro, esse processo nem sempre vem acompanhado das condições institucionais, financeiras e operacionais necessárias à sua execução efetiva. A distância entre a atribuição de responsabilidades e a capacidade real de implementá-las revela um conjunto de desafios recorrentes na gestão pública descentralizada.
A literatura aponta que, apesar dos avanços normativos que reforçaram o protagonismo de estados e municípios na oferta de serviços públicos, persistem limitações estruturais que dificultam a materialização dessa autonomia. Grin et al chamam atenção para o fato de que muitos municípios brasileiros ainda operam com capacidades estatais reduzidas, tanto no aspecto técnico quanto administrativo, o que compromete a gestão de políticas complexas e exige um esforço adicional de coordenação intergovernamental.
O caso do Programa Nacional de Alimentação Escolar (PNAE) é ilustrativo desse cenário. Após a promulgação da Lei 11.947/2009, que ampliou a responsabilidade dos municípios na execução do programa, observou-se um avanço normativo no sentido da descentralização. Contudo, para Silva, a realidade operacional impôs barreiras significativas, como deficiências na estrutura de compras, dificuldades de fiscalização dos fornecedores, ausência de planejamento nutricional adequado e baixa articulação.
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Esses obstáculos não são isolados. Em muitos contextos, faltam equipes técnicas qualificadas para elaborar e acompanhar a execução das políticas; há carência de infraestrutura básica, além da descontinuidade administrativa e da dependência excessiva de recursos federais. Esses fatores afetam diretamente a qualidade da oferta dos serviços públicos descentralizados e reforçam a necessidade de ações estruturantes para que a descentralização seja efetiva e não apenas formal.
Conclusão
A investigação dos efeitos da reforma tributária sobre a autonomia federativa evidencia que, embora a unificação dos tributos por meio do IBS tenha potencial para simplificar o sistema, ela também impõe desafios significativos à autonomia financeira e administrativa dos estados e municípios.
A centralização da arrecadação, aliada à redistribuição dos recursos, pode limitar a flexibilidade dos entes locais para responder às especificidades regionais e planejar políticas públicas conforme suas prioridades.
Os obstáculos enfrentados na implementação de políticas descentralizadas demonstram que a transferência formal de responsabilidades precisa ser acompanhada de investimentos em capacidade técnica e financeira. A disparidade entre os municípios em estrutura e recursos reforça a necessidade de mecanismos que apoiem menos preparados, garantindo que a descentralização não se traduza em desigualdade no acesso e na qualidade dos serviços públicos.
CRUZ, T. C. A unificação tributária da reforma fiscal e os reflexos financeiros no âmbito da municipalidade. Fortaleza: Universidade Federal do Ceará, 2024.
GRIN, E. J.; DEMARCO, D. J.; ABRUCIO, F. L. Capacidades estatais municipais: o universo desconhecido no federalismo brasileiro. Porto Alegre: Editora da UFRGS/CEGOV, 2021. Disponível em: https://lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/236393/001134539.pdf?sequence=1#page=86 Acesso em: 14 Jun 2025.
SILVA, S. P. Descentralização federativa e desafios de implementação do Programa Nacional de Alimentação Escolar: Uma análise Pós-Lei No 11.947/2009. Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 2022. Disponível em: https://www.econstor.eu/handle/10419/265282 Acesso em: 14 Jun 2025.