Após intensa mobilização pela inclusão da perspectiva de gênero na regulamentação da reforma tributária, introduzida pela Emenda Constitucional 132/2023, regulamentada pela Lei Complementar 214/2025, foi inaugurada uma nova etapa da política fiscal no Brasil.
O Sistema Tributário Nacional passa, pela primeira vez em sua história, a contar com dispositivos constitucionais que vinculam expressamente a tributação à promoção da igualdade entre homens e mulheres, à equidade étnico-racial e à redução das desigualdades socioeconômicas.
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Em especial o art. 475 da LC 214/2025 estabelece que o Poder Executivo da União e o Comitê Gestor do Imposto sobre Bens e Serviços (IBS) e da Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) realizem avaliação quinquenal da eficiência, eficácia e efetividade das normas tributárias, considerando, entre outros aspectos, seus impactos sobre essas desigualdades.[1]
A previsão normativa, embora promissora, suscita uma série de preocupações quanto à sua efetividade prática. Ainda que se trate de um comando com força constitucional, a ausência de parâmetros claros para a sua implementação ameaça reduzir essa avaliação a uma formalidade burocrática, esvaziando seu potencial transformador.
Quais indicadores serão utilizados? Quem fará parte da equipe avaliadora? Haverá escuta ativa de mulheres – especialmente daquelas em maior vulnerabilidade social? As pessoas de minorias étnicas e as pessoas negras serão ouvidas? Como as políticas serão submetidas à avaliação? Como assegurar que os efeitos regressivos da carga tributária sejam efetivamente corrigidos?
Tributação com perspectiva de gênero
A revolução do sistema tributário sob a ótica de gênero não se limita à saúde menstrual ou a regimes diferenciados de tributação. Os avanços são muito maiores. As alterações do sistema normativo tributário identificam e descrevem a situação de mulheres – especialmente mulheres negras[2] – que enfrentam pobreza extrema e exclusão social em contextos marcados por racismo e sexismo estruturais.
Embora o debate entre tributação e gênero ainda seja incipiente no Brasil, internacionalmente ele já está consolidado. Suas origens remontam ao movimento sufragista, que já denunciava a tributação sem representação. A ausência de voto feminino implicava ilegitimidade para a cobrança de tributos, refletindo o princípio “no taxation without representation”. Importa sempre o devido destaque “à origem dos vínculos entre tributação e gênero vindos do movimento sufragista, da luta pela igualdade e a negativa do pagamento de tributos pelas mulheres”[3].
Com o tempo, a discussão passou a considerar a carga tributária regressiva — que recai mais fortemente sobre o consumo — um fator de desigualdade de gênero, já que mulheres gastam proporcionalmente mais com bens essenciais. A isso se soma a constatação do chamado “pink tax”, que, embora não seja um tributo formal, revela o sobrepreço de produtos voltados ao público feminino, ampliando os ônus econômicos impostos às mulheres.[4]
A LC 214/2025 também introduziu mecanismos relevantes, como a definição da cesta básica nacional, a devolução de tributos a pessoas físicas de baixa renda (cashback) e a previsão de atenuação dos efeitos regressivos do sistema, todos inseridos em um contexto mais amplo de justiça fiscal e todos com repercussão maior sobre a população feminina e negra.
Análise do artigo 475 da LC 214/2025
O art. 475 da LC 214/2025, que regulamentou a EC 132, estabelece que a avaliação quinquenal deve considerar a eficiência, eficácia e efetividade das políticas tributárias sob diversas perspectivas – social, ambiental e de desenvolvimento econômico – incluindo, expressamente, os impactos na promoção da igualdade de gênero e étnico-racial bem como na redução das desigualdades de renda.
Trata-se de um comando normativo com força constitucional. Uma imposição. A lei afirma que o regime de tributação diferenciado “deverá” observar os impactos na promoção da isonomia de gênero, raça e classe. Deverá, e não poderá. Essa redação apresenta uma mudança significativa, pois determina que, a cada cinco anos, a estruturação do regime diferenciado seja reavaliada e demonstre ter promovido maior igualdade entre homens e mulheres.
Apesar da previsão legal, a ausência de clareza sobre como será realizada essa avaliação abre espaço para questionamentos. A grande problemática está em não permitir que a omissão do Poder Executivo ou do Comitê Gestor transforme o dispositivo em mera formalidade, esvaziando seu potencial transformador. É imprescindível que a avaliação envolva perspectivas interseccionais, considerando gênero, raça e classe de maneira integrada.
A crítica feminista à democracia formal, como a desenvolvida por Flávia Biroli,[5] ajuda a compreender a importância de mecanismos como o art. 475. Para a autora, as desigualdades de gênero não são marginais, mas estruturantes da exclusão política e econômica vivenciada por mulheres e outros grupos historicamente oprimidos. Assim, políticas públicas que desconsiderem essa dimensão reforçam a assimetria de poder e aprofundam a injustiça tributária.
Caminhos para a justiça fiscal interseccional
A reforma tributária, que contou com estudos e trabalho de convencimento de várias mulheres tributaristas – entre elas, procuradoras, pesquisadoras, professoras e advogadas – reunidas no grupo de Tributação e Gênero, cujas atividades foram iniciadas em abril de 2020 (FGV/SP, 2020), é fruto dos avanços das pesquisas que associam tributação, desigualdades, gênero, raça e classe. A EC 132/2023 responde, ainda que parcialmente, à necessidade de o Sistema Tributário Nacional incorporar essas demandas.
Discussões como a criação da cesta básica com alíquota zero, a devolução de tributos a pessoas físicas de baixa renda (cashback), a busca pela não regressividade dos tributos e a consagração da justiça fiscal como princípio tributário representam caminhos de evolução do texto constitucional e respostas às demandas e às análises acadêmicas sobre o distanciamento da tributação em relação às perspectivas de gênero, raça e classe.
São alterações significativas de rota. São manifestações estatais às demandas históricas das mulheres, há séculos desconsideradas e silenciadas. São progressão no estado civilizatório brasileiro.
Todavia, há muitas críticas a serem feitas – essenciais para fomentar novas reflexões e futuras combinações legislativas que gerem, de fato, equidade entre homens e mulheres. Por que, para além da simplicidade, da transparência, da cooperação, da defesa do meio ambiente e da justiça tributária não se incorporou explicitamente ao texto constitucional o princípio da igualdade de gênero?
Por que os absorventes não tiveram de pronto sua alíquota fixada em zero, como ocorreu com a cesta básica? Por que produtos de uso majoritariamente feminino, como bombas de amamentação, anticoncepcionais, medicamentos de reposição hormonal, não tiveram a alíquota reduzida ou também zerada?
Ainda que os dispositivos da LC 214/2025 estejam longe da completude normativa ideal, o reconhecimento expresso da necessidade de avaliação quinquenal dos impactos tributários sobre igualdade de gênero, raça e classe representam um marco histórico. E por isso essa análise precisa ser perseguida com máxima força pela comunidade jurídica e pela sociedade civil.
O desafio está em materializar esse dispositivo na realidade da sociedade brasileira. Para isso, será fundamental garantir a transparência da avaliação, a participação social qualificada e a responsabilização institucional. Apenas assim a tributação poderá deixar de reproduzir desigualdades e tornar-se, de fato, uma ferramenta concreta de justiça social.
[1] BRASIL. Lei Complementar n. 214, de 11 de janeiro de 2025. Institui o Imposto sobre Bens e Serviços (IBS), a Contribuição sobre Bens e Serviços (CBS) e dispõe sobre o Comitê Gestor do IBS. Diário Oficial da União: seção 1, Brasília, DF, 12 jan. 2025. Art. 475. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/lcp/lcp214.htm. Acesso em: 24 abr. 2025.
[2] Conforme convenção do IBGE, no Brasil, negro é quem se autodeclara preto ou pardo, pois a população negra é o somatório de pretos e pardos. Para fins políticos, negra é a pessoa de ancestralidade africana, desde que assim se identifique. Cf. Fátima Oliveira, Ser negro no Brasil: alcances e limites, Estudos Avançados, v. 18, n. 50, p. 57–60, abr. 2004. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0103-40142004000100006. Acesso em: 26 jun. 2025.
[3] BORGES, Lana. Tributação e gênero: políticas públicas de extrafiscalidade e a luta pela igualdade. Belo Horizonte: Fórum, 2023. p. 102.
[4] PISCITELLI, Tathiane. Tributação de gênero no Brasil. Valor Econômico, Fio da Meada, 27 ago. 2019. Disponível em: https://valor.globo.com/legislacao/fio-da-meada/post/2019/08/tributacao-de-genero-no-brasil.ghtml. Acesso em: 23 abr. 2025.
[5] BIROLI, Flávia. Gênero e desigualdades: limites da democracia no Brasil. São Paulo: Boitempo, 2018, p. 110.