Em meio à busca do Estado por novas fontes de arrecadação fiscal, um antigo problema persiste de maneira silenciosa: a atuação dos chamados devedores contumazes. No setor de combustíveis, empresas que recorrem à sonegação sistemática de impostos como prática deliberada geram prejuízos milionários aos cofres públicos – além de criarem um ambiente de concorrência desleal.
De acordo com levantamento da Fundação Getúlio Vargas de 2021, a estimativa de perdas tributárias promovida por esses atores do setor energético somam valores próximos a R$ 14 bilhões anuais. Em relação à sonegação, o estudo apontou a adulteração, as vendas sem nota fiscal e desvio de finalidade como os principais contribuintes para o valor total.
Já no âmbito da inadimplência, os devedores contumazes, ao lado de empresas de fachada, são centrais para as perdas tributárias. Segundo o Instituto Combustível Legal (ICL), a dívida ativa total de ICMS de empresas do mercado de combustíveis supera R$ 100 bilhões. Desse total, menos de 1% do valor que é devido pelos devedores contumazes é recuperado pela União.
Essa estimativa expõe falhas institucionais e lacunas na legislação que enfraquecem o sistema e o tornam vulnerável à ação de grupos especializados em fraudar o fisco – os quais, muitas vezes, estão relacionados a redes criminosas no setor. Projetos em trâmite no Congresso Nacional tentam trilhar caminhos para a resolução desse impasse, de forma a propor critérios objetivos de classificação e responsabilização do devedor contumaz.
A prática do devedor contumaz no setor de combustíveis
Afinal, o que é o devedor contumaz? É uma figura, geralmente centrada em uma empresa que, recorrentemente, deixa de recolher tributos de forma a estruturar seu modelo de negócio com base na inadimplência fiscal.
Diferentemente do devedor eventual, que por alguma circunstância momentânea não paga seus impostos, o devedor contumaz atua de forma planejada, uma vez que encontra nesse modelo vantagens em relação aos concorrentes que operam dentro da lei.
De acordo com dados da Receita Federal, esse grupo é composto por cerca de mil empresas no país, com uma dívida acumulada em R$ 240 bilhões.
Para especialistas na área, a prática do devedor contumaz aplicado ao setor se traduz em uma forma de concorrência desleal, com prejuízos contínuos para os agentes econômicos que seguem as normas tributárias brasileiras. Segundo Sérgio Araújo, presidente da Associação Brasileira dos Importadores de Combustíveis (FG), o impacto para os importadores é direto e imediato, especialmente sobre sua competitividade.
“Os importadores são obrigados, por lei, a recolher integralmente todos os tributos no momento do desembaraço aduaneiro da mercadoria. Isso representa uma imobilização significativa de caixa antes mesmo das vendas. Já os devedores contumazes operam com custos reduzidos entre 20% e 25% por não pagarem tributos federais e estaduais”, explica Araújo.
Na prática, esse efeito gera uma falsa impressão de preço mais baixo ao consumidor, mas que resulta de práticas ilícitas. Isso porque as empresas regulares – as quais pagam integralmente tributos como PIS, Cofins e ICMS – trabalham com margens reduzidas de preço e não conseguem competir com os devedores contumazes no valor final do produto.
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Com isso, o resultado é uma retração de investimentos, fechamento de operações e a perda de empregos formais. A longo prazo, a consequência central é um ambiente hostil à competição no setor de combustíveis.
A avaliação é compartilhada por Ana Mandelli, diretora executiva de Downstream do Instituto Brasileiro de Petróleo e Gás (IBP): “O devedor contumaz compromete tanto a arrecadação quanto a competitividade já na largada, porque toma uma decisão de negócios de não pagar tributos para se favorecer disso. Num primeiro momento, até pode repassar o valor que sonegou ao consumidor, criando a impressão de preço mais barato. Mas, depois, domina o mercado, elimina a concorrência e passa a lucrar sem prestar contas ao Estado — nem devolver benefício algum à sociedade”, explica.
As distribuidoras regionais, por sua vez, também são atingidas por esse fenômeno. Essas pequenas e médias empresas têm menor porte, portanto, uma capacidade financeira restrita. Assim, estão mais suscetíveis aos impactos dessa competição desleal em relação aos players adeptos à sonegação fiscal presentes na cadeia do combustível. Os danos causados pelos devedores contumazes recaem não apenas sobre o setor privado. Essas distorções afetam a cadeia produtiva como um todo – e, em última instância, atingem o consumidor e o Estado.
Do ponto de vista da arrecadação pública, a atuação dos devedores contumazes tem efeito sobre o financiamento de políticas sociais e de infraestrutura. Quando empresas deixam de recolher tributos reiterada e deliberadamente, o Estado arrecada menos — o que significa menos recursos para saúde, educação, transporte e programas sociais.
Este conteúdo faz parte do Joule, editoria especial com matérias e um podcast especial do setor de energia do JOTA, feito em parceria com o Instituto Brasileiro de Transição Energética (Inté).
Para Ana Mandelli, do IBP, esse tipo de prática não só distorce o funcionamento do mercado como também mina a capacidade do Estado de agir. “A nossa capacidade como Estado de cobrar devedores é muito pequena. Os números mostram que, da dívida ativa da União, menos de 0,5% é efetivamente recuperada. E isso ainda atravessa todo o trâmite administrativo e jurídico, o que dá ao devedor contumaz uma musculatura enorme para nunca pagar”, afirma.
Além disso, o desequilíbrio fiscal gerado por essas práticas distorce os preços no mercado e afeta o consumidor final, que acaba arcando, indiretamente, com os prejuízos dessa evasão. “Nos primeiros sete dias do mês de junho deste ano, por exemplo, na média dos preços para o óleo diesel praticado no Brasil, os tributos federais e estaduais representaram 23,8 % do preço final do produto”, cita Araújo, da Abicom.
Em entrevista ao Valor, Emerson Kapaz, presidente do Instituto Combustível Legal (ICL), citou que apenas uma empresa com dívida ativa tem R$20 bilhões de dívidas em impostos com venda de combustíveis. São Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais e Paraná são os estados mais afetados pela sonegação fiscal sobre os combustíveis.
Vácuo legal e propostas do Congresso Nacional
Este ano, o setor de combustíveis aguarda com grande expectativa a tramitação de dois projetos de lei no Congresso Nacional. O Projeto de Lei Complementar 164/2022, de autoria do então senador Jean Paul Prates (PT-RN), é um dos grandes destaques, por estabelecer critérios para a categoria de devedor contumaz. “O PLP propõe estabelecer normas gerais para identificar e controlar devedores contumazes, ou seja, aqueles que não pagam tributos de forma sistemática e injustificada”, descreve Sergio Massillon, diretor institucional da Federação Nacional das Distribuidoras de Combustíveis, Gás Natural e Biocombustíveis (Brasilcom).
Por meio da regra, enquadra-se na categoria quem não quitar os impostos em quatro períodos seguidos ou seis alternados dentro de 12 meses. A dívida fiscal será considerada quando superar o valor de R$ 15 milhões ou 30% do faturamento anual, sendo o valor da receita acima de R$ 1 milhão. Para Massillon, a iniciativa tem o objetivo de prevenir desequilíbrios na concorrência entre as empresas.
No início de abril, houve um debate realizado em audiência pública pela Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) sobre o PL 164/2022 e o Projeto de Lei do Senado 284/2017, que dispõe sobre a criação de regimes especiais de tributação para impedir o uso de impostos como mecanismo de desequilíbrio concorrencial.
O senador Veneziano Vital do Rêgo (MDB-PB), relator dos dois projetos, presidiu a mesa, que contou também com outros parlamentares e representantes do setor. “A ausência de uma regulamentação mais rigorosa tem permitido que maus empresários e até mesmo organizações criminosas façam uso recorrente da figura do devedor contumaz para fraudar o sistema tributário, de forma sistemática e sem justificativa legítima”, afirma o senador, presidente da Frente Parlamentar de Energia.
Para ele, o PLP 164/2022 representa “um mecanismo jurídico sólido para combater os devedores contumazes, fortalecer a arrecadação pública e assegurar condições mais justas de competição no setor energético”.
“A omissão legislativa tem permitido que os devedores contumazes sigam atuando com impunidade. Essa lacuna favorece a perpetuação de fraudes fiscais estruturadas, que causam prejuízos significativos à arrecadação pública e à livre concorrência”, completa Veneziano Vital do Rêgo.
Para Massillon, da Brasilcom, o Projeto de Lei Complementar 125/2022 é outro recurso relevante e urgente em tramitação. O projeto propõe a criação de um Código de Defesa dos Contribuintes, ao estabelecer normas gerais sobre direitos, garantias, deveres e procedimentos na relação entre contribuintes e a Fazenda Pública em todo o Brasil. “A proposta visa tornar mais dinâmico, unificado e moderno o processo administrativo e tributário nacional, promovendo um novo modelo de confiança e cooperação entre o fisco e os contribuintes”, acrescenta o diretor institucional da federação.
O relator do projeto, senador Efraim Filho (União-PB), reforça o objetivo de consolidar a regulação sobre o devedor contumaz de forma clara e executável. “O PLP 125/2022 é o Código de Defesa do Contribuinte. O texto proposto traz uma definição consolidada a respeito da prática do devedor contumaz. As situações que caracterizam esse tipo de inadimplência estão descritas de forma objetiva, o que facilita bastante o trabalho da Administração Tributária”, explica.
Segundo ele, tornar o conceito confuso ou cheio de exceções colocaria em risco a efetividade da futura legislação: “Se a gente começar a inserir regras que compliquem essa identificação, correremos o risco de dificultar a aplicação prática da lei”.
Para Araújo, presidente da Abicom, a aprovação e regulamentação da lei voltada aos devedores contumazes é primordial para fortalecer o combate à sonegação sistemática de tributos no setor de combustíveis no país. São mecanismos legais para coibir a ação dessas empresas.
Ana Mandelli, diretora do IBP, defende que a aprovação do PLP 164 é essencial para diferenciar empresas que enfrentam dificuldades pontuais daquelas que optam pela fraude como modelo de negócio. “É fundamental separar quem está discutindo um débito específico — muitas vezes com base em seus direitos constitucionais — daquele que deliberadamente decide não pagar para obter vantagem competitiva. O projeto de lei tipifica essa figura e define com clareza quem é o devedor contumaz. É o que vai separar o joio do trigo”, conclui.
Elo com o crime organizado
Quando praticada de forma recorrente, a sonegação sistemática de impostos ultrapassa os limites da evasão fiscal. Nesse contexto, o devedor contumaz se transforma na porta de entrada para a atuação de organizações criminosas em setores estratégicos da economia brasileira, como ocorre no de combustíveis.
O delegado da Polícia Federal Jorge Pontes, head da Bridging Consultoria, classifica essa estratégia como um verdadeiro modelo de negócios ilícito. “São pessoas jurídicas que fazem da sonegação o seu modelo de funcionamento. A não quitação dos impostos ocorre como um dos objetivos do próprio empreendimento”, alerta.
Na visão do especialista, o funcionamento de empresas que deliberadamente deixam de recolher tributos “não é uma falha administrativa”, mas a institucionalização da fraude como método operacional.
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Pontes também indica que a desregulamentação de mercados sensíveis cria ambientes de vulnerabilidade – como ele define como um “convite ao crime”. Com a ausência de mecanismos de fiscalização, setores ficam à margem de lavagem de dinheiro, pirataria, falsificação e outras práticas ilegais. “Omissão é tudo o que o crime organizado precisa”, diz.
Para ele, seria contundente a criação de um novo tipo penal específico para o devedor contumaz, que poderia ser nomeado de “organização criminosa tributária”. Segundo o delegado, essas empresas têm operações estruturadas em redes e frequentemente contam com uma mesma equipe de advogados, contadores e sócios ocultos. A diferença, é que se reestruturam com novos CNPJs após fecharem – e deixam dívidas milionárias sem pagamento.
No setor de combustíveis, em particular, não só representa uma queda na arrecadação pública, como também traz riscos como adulteração de produtos, transporte irregular e uso de estruturas fora dos padrões técnicos exigidos.
Nesse sentido, o combate ao devedor contumaz se estende para além da justiça fiscal. É uma medida de segurança pública e de proteção da ordem econômica. É necessário restringir a fraude tributária para que não evolua para formas mais graves de criminalidade organizada. “É o que chamamos de medidas ‘anti-crime by design’. Trata-se da necessidade de embutir medidas anti-crime no desenho de todas as políticas, de todas as áreas da administração pública”, acrescenta Pontes.
O PLP 125 também é visto por parlamentares como um instrumento legal primordial no enfrentamento a fraudes com vínculos ao crime organizado. “Em muitos casos, os devedores contumazes mantêm vínculos com facções, milícias e outros grupos criminosos. Essas empresas já nascem com o propósito de sonegar tributos e lavar dinheiro, utilizando o sistema tributário como ferramenta para fraudar o Estado e desequilibrar o mercado”, afirma o senador Efraim Filho.
Para ele, ao estabelecer sanções específicas e objetivas para a conduta reiterada de inadimplência, o PLP 125 cria uma barreira legal contra organizações que operam à margem da lei, mas disfarçadas de atividades econômicas regulares.
O deputado federal Julio Lopes (PP-RJ), vice-presidente de petróleo da Frente de Energia, também compartilha sua visão sobre a prática: “O devedor contumaz deixou de ser apenas um problema fiscal para se transformar em uma ameaça à segurança nacional, ao alimentar o crime organizado e as milícias.”
O parlamentar reforça que o Congresso precisa agir com firmeza, “com leis que enquadrem essa conduta como crime econômico grave, permitam o bloqueio imediato dessas empresas, a responsabilização de seus sócios e a cassação do direito de operar no setor. Essa é uma questão de Estado, não apenas de mercado”, opina.
O deputado defende a criação de mecanismos para suspender inscrições fiscais e restringir o acesso a benefícios tributários, especialmente no setor de combustíveis. “É urgente endurecer as regras, especialmente no setor de combustíveis, onde há evidências claras de ligação com milícias, tráfico e outras formas de crime organizado”, finaliza Lopes.
Arrecadação sem penalizar o contribuinte
A discussão sobre novas fontes de arrecadação fiscal também mobiliza o Congresso Nacional. Enquanto o governo avalia medidas como o aumento de alíquotas do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF), há quem defenda que o foco deveria estar na recuperação de dívidas fiscais estruturadas.
“O Brasil não precisa criar novos impostos nem penalizar ainda mais quem já cumpre com suas obrigações”, afirma o deputado Otto Alencar Filho (PSD-BA), também membro da Frente Parlamentar de Energia. Para ele, a concentração de dívidas tributárias em poucos CNPJs é um sinal de que o sistema falha em impedir fraudes recorrentes.
Para argumentar sobre isso, Alencar Filho traz dados compilados pela Receita Federal e pela Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN). “Cerca de R$ 200 bilhões estão concentrados em apenas 1.200 CNPJs, a maioria sem perspectiva de recuperação por conta de práticas como uso de laranjas, blindagem patrimonial e reincidência deliberada. Se recuperado, esse valor representaria uma arrecadação muito mais eficiente e legítima”, explica.
O deputado também defende a criação de um cadastro nacional restritivo e a responsabilização solidária como formas de prevenir a reincidência. “Enfrentar o devedor contumaz significa proteger o contribuinte honesto, reforçar a arrecadação de forma estruturada e preservar a competitividade da economia brasileira”, conclui.