Inaugurada oficialmente em 21 de abril de 1960, Brasília nasceu como um projeto moderno e ousado, pensado para representar o futuro do país. A Catedral Metropolitana Nossa Senhora Aparecida, projetada por Oscar Niemeyer e também iniciada nesse mesmo contexto de fundação, tornou-se um dos marcos arquitetônicos mais emblemáticos da cidade.
A construção do templo religioso acompanhou os passos iniciais da nova capital e virou um de seus cartões-postais no Brasil e no mundo.

A Catedral de Brasília não surgiu por acaso — ela foi pensada desde o início como parte do plano urbanístico da nova capital federal. O arquiteto Lucio Costa, responsável pelo projeto do Plano Piloto, incluiu a Catedral como um dos elementos centrais da Esplanada dos Ministérios, refletindo a proposta de criar uma cidade que integrasse, de forma harmônica, os poderes civis, os espaços públicos e também a religiosidade.
O Metrópoles obteve acesso exclusivo a um acervo inédito preservado pelo Arquivo Público do Distrito Federal (ArPDF), que revela uma faceta pouco conhecida da história da Catedral. Mais de 200 documentos originais — incluindo plantas, croquis e anotações manuscritas — oferecem um olhar detalhado sobre o meticuloso processo de criação da obra-prima de Niemeyer.
“Brasília, cidade que inventei”
O templo não foi construído por solicitação da Igreja Católica, mas surgiu da intuição de Lucio Costa ao elaborar o projeto urbanístico da nova capital em 1957. Ele percebeu que Brasília não poderia se firmar apenas sob o signo do poder político — executivo, legislativo e judiciário — e sentiu a necessidade de incluir um elemento religioso.
“Ao apresentar o plano urbanístico, Lucio Costa disse que o projeto nasceu como sinal da cruz, de quem assinala um lugar ou dele toma posse. Embora a construção da Catedral não estivesse prevista no edital do Concurso Nacional do Plano Piloto da Nova Capital do Brasil, ele a propôs como parte fundamental do projeto, inspirado também por sua formação histórica e pela observação de que, tradicionalmente, as grandes cidades sempre possuem uma catedral como ponto de convergência da fé cristã”, observou o historiador Elias Manoel da Silva.
A localização da Catedral de Brasília, em uma praça autônoma à Esplanada dos Ministérios, reflete uma decisão arquitetônica e simbólica cuidadosamente pensada pelo arquiteto simbolizando fisicamente a laicidade do Estado e a separação entre governo e religião.

Embora faça parte do conjunto monumental da capital, o templo religioso não foi posicionado no eixo central por três razões principais: a separação entre Igreja e Estado, que impede que símbolos religiosos ocupem o centro do poder político; a valorização da escala e da arquitetura do edifício, que ganha mais destaque em um espaço autônomo; e a preservação da perspectiva urbanística da Esplanada, que deve permanecer livre até o ponto de cruzamento dos dois eixos principais da cidade.
Primeiros rabiscos da igreja mãe
O Arquivo Público do Distrito Federal, órgão guardião da memória oficial da cidade, reúne mais de 200 documentos nunca vistos antes do projeto estrutural e da planta da Catedral de Brasília. O material feito em papel vegetal, datado do período entre 1957 e 1970, é assinado pelo arquiteto Oscar Niemeyer e pelo engenheiro Joaquim Cardozo.
Veja o acervo inédito digitalizado:
Cardozo é conhecido por transformar em realidade as formas ousadas de Oscar Niemeyer. Ele foi o “cérebro estrutural” por trás de muitos dos maiores marcos arquitetônicos do modernismo brasileiro. Na Catedral, o engenheiro calculou e viabilizou a estrutura complexa e única do projeto.
Ele dominava os cálculos de concreto armado com geometrias complexas, o que permitiu a execução física daquilo que, até então, existia apenas como traço artístico de Niemeyer. Por meio dos desenhos do próprio arquiteto e das anotações técnicas feitas pelo Joaquim Cardozo, é possível acompanhar a evolução do projeto da Catedral.
“Em muitos documentos, a gente vê as anotações feitas à lápis por Joaquim — sugerindo soluções estruturais que, às vezes, o próprio Oscar descartava. Em alguns croquis, está lá escrito: ‘solução abandonada pelo arquiteto’. Isso mostra como a catedral foi se transformando até chegar à forma icônica que a gente conhece hoje”, comenta o arquivista do ArPDF, Hélio Júnior.
Os registros revelam uma história pouco conhecida da Catedral de Brasília — mostram o que ela poderia ter sido. Entre as versões iniciais do projeto, estavam propostas de uma estrutura significativamente mais alta, com mais colunas, alterações na forma de entrada da igreja e, até mesmo, com o uso de uma cruz diferente da que foi, de fato, construída.
“Oscar projetou um um túnel por baixo, onde tem uma diminuição da luz e, quando a pessoa entra no espaço, ela se deslumbra com o átrio da Catedral, com todos aqueles vitrais e com os anjos pendurados. A gente percebe esses elementos já no projeto, porque os anjos, por exemplo, constam na planta original”, detalha Hélio.
Segundo o arquivista, os registros revelam o processo de experimentação por trás do projeto final e ajudam a entender que a forma atual da Catedral não foi fruto do acaso, mas resultado de uma série de escolhas técnicas e estéticas pensadas e redesenhadas. E isso só é possível de ser entendido graças à preservação dos documentos.
Niemeyer se inspirou nos antigos mestres que construíram catedrais com cúpulas gigantes usando concreto armado para formar uma estrutura simples e imponente. O projeto original tinha 21 colunas em forma de bumerangue, que se uniam no topo por uma cinta de concreto, com uma cruz metálica sobre a laje. Além desse volume principal, haveriam apenas alguns elementos enterrados – túnel de acesso, batistério e sacristia – e o campanário separado.
Ele idealizou uma obra em que a estrutura parece ascender aos céus, sendo formalmente simples, compacta e fazendo dos pilares estruturantes os protagonistas. O arquiteto baseou o desenho da Catedral numa estrutura hiperboloide.
Cardozo ajustou o projeto, reduzindo as colunas para 16, com bases mais finas e colocando a laje um pouco mais baixa do que o previsto. Cardozo também fez cálculos avançados para avaliar os efeitos do vento sobre as colunas e vitrais. As cintas de concreto, uma no topo e outra no solo garantem a estabilidade da estrutura e ajudando a suportar os pilares.
Guardiões da memória
O acervo do projeto da Catedral está sob custódia do Arquivo Público do DF desde 2008. O trabalho de conservação desse material é minucioso: envolve restauração de papéis frágeis como o vegetal, controle rigoroso de temperatura, umidade e luz, além da digitalização para garantir o acesso ao público.
Criado apenas em 1985, o ArPDF nasceu 25 anos após a inauguração da capital federal. Nesse período, milhares de documentos relacionados ao desenvolvimento urbano de Brasília ficaram dispersos ou sem o tratamento técnico adequado. Desde então, a instituição se tornou responsável pela preservação da memória oficial da cidade.
Brasília é uma cidade diferente de todas as outras do país. Ela nasceu planejada, e isso significa que tudo foi registrado desde o início — fotografado, filmado, escrito. A capital foi documentada antes mesmo de existir, destaca a equipe. O documento mais antigo sobre a criação de Brasília que está sob custódia do órgão data de 1892.
“Todo arquivo nasce, antes de tudo, com uma função institucional e administrativa. São documentos produzidos por pessoas contratadas pelo Estado, como no caso da Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Meio Ambiente, um órgão oficial distrital. Com o tempo, esses registros, que inicialmente servem para fins burocráticos, ganham um novo valor: eles amadurecem e passam a ter relevância histórica. É nesse momento que eles chegam à nossa guarda, como parte da missão do Arquivo de preservar a memória do DF”, explica Arthur Silva, arquivista do ArPDF.
Construção da obra-prima
A Catedral de Brasília teve a pedra fundamental lançada em 1958. A parte estrutural foi concluída no dia da inauguração de Brasília. Em 1961, os trabalhos ficaram parados durante o breve governo de Jânio Quadros por conta de polêmicas relacionadas a gastos do poder público com uma obra religiosa.
Nesse período, o esqueleto de concreto da Catedral fez parte da paisagem da nova capital, um símbolo da permanente construção da cidade. Entre os mandatos de João Goulart (1961-1964), Humberto Castelo Branco (1964-1967) e Artur da Costa e Silva (1967-1969), o templo enfrentou períodos de aperto financeiro e incertezas, inclusive sobre sua conclusão.

“Na inauguração de Brasília, as colunas da Catedral já estavam de pé. Mas aí aparece um pequeno problema: com a criação da Arquidiocese, a Novacap passou a responsabilidade da obra para a Igreja Católica. A partir daí, a Arquidiocese de Brasília assumiu o projeto, com apoio do governo, mas também precisando organizar campanhas para arrecadar fundos. Foi esse esforço que manteve a construção até sua inauguração em 1970”, conta o historiador do ArPDF.
“Por uma Brasília cristã”
O cardeal Dom Raymundo Damasceno, arcebispo emérito de Aparecida (SP), chegou à capital em 1961, a convite de Dom José Newton, o primeiro arcebispo de Brasília.
Desde então, acompanhou de perto a construção da Catedral, realizada em duas etapas. A primeira contou com doações de operários e empreiteiras que atuavam na cidade. Já a segunda fase incluiu a edificação do batistério de Athos Bulcão, do túnel de acesso, da sacristia, do espaço destinado ao órgão e, posteriormente, a instalação dos vitrais assinados por Marianne Peretti.
“A segunda etapa da construção da Catedral foi financiada, em parte, por uma campanha promovida pelo primeiro arcebispo, chamada Por uma Brasília Cristã. Também teve uma campanha entre as pessoas com o nome de Maria, pedindo ajuda. Mais tarde, a Catedral foi tombada pelo governo federal, o que possibilitou a liberação de recursos oficiais para sua conclusão”, relembra o cardeal.
A consolidação de Brasília como capital federal, a partir da formalização da transferência de praticamente todos os órgãos do governo federal e a exigência de instalação de representações diplomáticas no Distrito Federal feitas no mandato de Emílio Garrastazu Médici, finalmente selou o destino da Catedral no imaginário brasileiro e acelerou a inauguração do monumento, em 31 de maio de 1970.
Dom Damasceno reflete que há também um simbolismo muito bonito em sua forma: a ideia de que a Catedral representa a tenda de Deus entre seu povo, como no Antigo Testamento da Bíblia, quando os israelitas carregavam a arca da aliança pelo deserto. “É como se fosse a morada de Deus no meio da caminhada de um povo”, compara.
Monumento histórico
A partir de 1978, a igreja passou a integrar o conjunto urbanístico reconhecido, em 1987, pela Unesco como Patrimônio Cultural da Humanidade. Três anos depois, em 1990, a Catedral foi tombada como Monumento Histórico e Artístico Nacional. Atualmente, o templo é um dos pontos turísticos mais visitados do DF
Para o arquiteto e professor da Universidade de Brasília (UnB), Frederico Flósculo, a Catedral representa uma fusão única entre arte e arquitetura religiosa.
“A arte realmente é capaz de transformar símbolos que não apontam para um futuro republicano e desenvolvido em algo que parece exatamente pressagiar um novo tipo de futuro, um novo tipo de imaginário para o Brasil. É uma extraordinária exceção na arquitetura religiosa brasileira”, comenta.
Ele observa que, embora a igreja seja uma obra contemporânea, ela incorpora elementos do espírito medieval das catedrais católicas, como a cátedra, o lugar onde se assenta o bispo. Essa fusão de passado e presente confere à Catedral uma qualidade única e atemporal.
“É uma profunda raiz para o passado, mas que a magia da arte de Niemeyer transformou num símbolo extraordinário de beleza, de leveza, de elegância”, exalta.
Em relação à experiência do visitante, Flósculo destaca o efeito psicológico criado pela entrada da igreja. Ele descreve como os visitantes passam por um túnel escuro e, ao emergirem, são surpreendidos por uma explosão de luz filtrada pelos vitrais. Esse efeito, segundo Flósculo, é um exemplo de “efeito Gestalt”, que envolve a percepção de formas e espaços de maneira que provoca uma resposta emocional e espiritual.
O arquiteto também enfatiza a habilidade de Niemeyer em transformar símbolos tradicionais em algo novo e significativo. Além disso, Flósculo observa que a arquitetura religiosa no Brasil raramente alcança o nível de beleza e complexidade presente na Catedral de Brasília.