A definição do Supremo Tribunal Federal de que a coisa julgada em matéria tributária cessa diante de posterior decisão em repercussão geral ou em controle concentrado de constitucionalidade trouxe implicações significativas para a relação entre Fisco e contribuintes. Um ponto relevante desse debate é a possibilidade, ou não, de aplicação de penalidades na cobrança dos tributos que deixaram de ser recolhidos enquanto vigente a decisão judicial favorável ao contribuinte.
Em 2023, no julgamento emblemático dos Temas 881[1] e 885[2] da repercussão geral, o STF firmou entendimento de que não há intangibilidade absoluta: decisões definitivas que afastam exigência fiscal deixam de produzir efeitos quando o STF se pronunciar em sentido oposto sobre o mesmo tema (controle concentrador/repercussão geral).
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Portanto, de acordo com a orientação do STF, a coisa julgada cessa a partir de sua alteração jurisprudencial. Essa decisão, contudo, gerou consequências importantes quanto ao passado, especificamente no período em que o contribuinte se beneficiou de decisão judicial transitada em julgado. Além do tributo, são devidas as penalidades para aquele contribuinte que agiu de boa-fé?
A aplicação de multas tributárias pressupõe conduta ilícita do contribuinte, ou seja, caracterização de descumprimento de dever legal. Quando, porém, a não incidência do tributo estava amparada por decisão judicial com trânsito em julgado, a nosso ver, não se pode falar em infração.
Em nossa opinião, punir o contribuinte que seguiu decisão judicial eficaz significaria subverter esse princípio, transformando a obediência à ordem judicial em ilícito sancionável. Sob esse prisma, a multa aplicada em tais hipóteses violaria, ainda, a boa-fé objetiva, que exige lealdade e previsibilidade na relação entre Fisco e contribuinte.
Impor multa retroativa em razão da cessação da eficácia da coisa julgada impõe ônus indevido ao contribuinte que agiu com boa-fé, o que é incompatível com o Estado de Direito, com a segurança jurídica e com a proteção à confiança legítima.
Como exemplo dessa irracionalidade, cabe destacar a discussão envolvendo o IPI na revenda de importados, em que muitos contribuintes possuíam decisões transitadas em julgado que afastavam a cobrança do imposto nessa operação. Com a mudança de entendimento do STF, tais decisões perderam eficácia, mas não se pode cogitar da exigência de multa.
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Vale relembrar no caso do IPI que, em um primeiro momento, o STF firmou orientação no sentido da natureza infraconstitucional da controvérsia. Nesse contexto, a Primeira Seção do STJ, em 2014[3], definiu a questão de forma favorável aos contribuintes, no sentido da impossibilidade de nova cobrança do IPI na saída do produto importado quando da sua comercialização no mercado nacional.
Para surpresa dos contribuintes, em 2015, no julgamento do Tema Repetitivo nº 912[4], a Primeira Seção do STJ mudou seu posicionamento, desta feita decidindo pela legitimidade de uma nova incidência do IPI quando da saída do produto importado na operação de revenda.
A confusão aumenta no ano seguinte, em 2016[5], tendo o STF revisto o seu entendimento para reconhecer a natureza constitucional da matéria e acolhendo a repercussão geral e, em 2020, decidindo pela constitucionalidade da incidência do imposto no desembaraço aduaneiro e na saída do estabelecimento importador[6] (Tema 906 da Repercussão Geral).
A insegurança jurídica causada pelas decisões conflitantes dos Tribunais Superiores é gritante. Admitir ainda a imposição de multas sobre a ausência de recolhimento no período anterior significaria não só validar essa confusão jurisprudencial como também penalizar conduta praticada sob legítima autorização judicial. O tributo pode ser exigido dali em diante, mas não há espaço para a cobrança retroativa e com multa. É uma sanção descabida.
Dessa forma, afastar, ao menos, a aplicação de penalidades em decorrência da cessação da coisa julgada representa a reafirmação da função estabilizadora do Judiciário e a mínima preservação da confiança legítima dos contribuintes. Trata-se de uma solução que prestigia a boa-fé, evita efeitos confiscatórios e reforça a coerência do sistema tributário.
Mais do que uma questão pontual, o tema projeta efeitos para todos os litígios tributários em que houve trânsito em julgado em favor do contribuinte e posterior mudança de jurisprudência. Ao ser reconhecida a inaplicabilidade das penalidades, garante-se que a transição entre regimes jurídicos se faça de forma equilibrada, sem transformar a obediência a decisões judiciais em fonte de punição.
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[1] RE 949297 – Limites da coisa julgada em matéria tributária, notadamente diante de julgamento, em controle concentrado pelo Supremo Tribunal Federal, que declara a constitucionalidade de tributo anteriormente considerado inconstitucional, na via do controle incidental, por decisão transitada em julgado.
[2] RE 955.227 – Efeitos das decisões do Supremo Tribunal Federal em controle difuso de constitucionalidade sobre a coisa julgada formada nas relações tributárias de trato continuado.
[3] Embargos de Divergência nº 1.411.749/PR.
[4] EREsp nº 1.403.532/SC – Tese julgada para efeito do art. 543-C, do CPC: “os produtos importados estão sujeitos a uma nova incidência do IPI quando de sua saída do estabelecimento importador na operação de revenda, mesmo que não tenham sofrido industrialização no Brasil”.
[5] Em 1º.7.2016 – Decisão: O Tribunal reputou constitucional a questão, vencidos os ministros Cármen Lúcia, Roberto Barroso, Teori Zavascki, Rosa Weber, Dias Toffoli e Edson Fachin. O Tribunal reconheceu a existência de repercussão geral da questão constitucional suscitada, vencidos os ministros Cármen Lúcia, Roberto Barroso, Teori Zavascki, Rosa Weber, Dias Toffoli e Edson Fachin.
[6] RE 946.648 – Violação ao princípio da isonomia (art. 150, II, da Constituição Federal) ante a incidência de IPI no momento do desembaraço aduaneiro de produto industrializado, assim como na sua saída do estabelecimento importador para comercialização no mercado interno.

