Para Angela Davis[1], “a existência generalizada do assédio sexual no trabalho nunca foi um grande segredo. De fato, é precisamente no trabalho que as mulheres são mais vulneráveis. Por já terem estabelecido a dominação econômica sobre suas subordinadas do sexo feminino, empregadores, gerentes e supervisores podem tentar reafirmar sua autoridade em termos sexuais. O fato de que as mulheres da classe trabalhadora são mais intensamente exploradas do que os homens, contribui para sua vulnerabilidade ao abuso sexual, enquanto a coerção sexual reforça, ao mesmo tempo, sua vulnerabilidade à exploração econômica”.
O trabalho exerce uma grande importância na vida das pessoas sendo um componente da própria personalidade, um local em que se produz afetos e que ocupa grande parte do tempo da vida, deste modo, um ambiente de trabalho violento, desrespeitoso e com assédio traz consequências graves para a qualidade de vida e inserção social dos trabalhadores, sendo fundamental que sejam garantidas condições para um trabalho digno, respeitoso e ético.
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O assédio gera nas vítimas um grande sofrimento, em muitas situações, provoca danos físicos e psicológicos, redução da autoestima, reflexos na vida familiar, social e afetiva, por isso o assédio deve ser tratado como uma violência grave.
Importante destacar que as mulheres são as principais vítimas de assédio no trabalho, segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, 49,6% das mulheres sofreram assédio e em 20,5% dos casos, o assédio foi praticado no ambiente de trabalho.[2]
Como sabemos, muitas vezes, as consequências sociais e pessoais de uma denúncia de assédio podem ser muito sérias, notadamente quando não se conta com uma rede de apoio ou com canais seguros de escuta e acolhimento, fazendo com que as vítimas prefiram esconder seus sofrimentos e os assediadores permanecerem impunes, provavelmente assediando outras pessoas.
O serviço público, como parte deste contexto social, não está isento de ter a prática de assédio e outras violências em seu interior.
Neste contexto, para a administração pública há um prejuízo direto, pois o ambiente em que existe assédio fica contaminado, refletindo diretamente na produtividade, não somente da vítima, mas de todos do setor, o que implica no aumento de rotatividade de pessoal, elevação da possibilidade de erros e acidentes, absenteísmo, licenças-médicas, aumento de doenças profissionais e acidentes de trabalho.
Todas essas consequências evidentemente, além de ocasionarem prejuízos sérios às vítimas, oneram a sociedade tanto sob o ponto de vista orçamentário quanto pela deficiência na prestação do serviço público, afetando e comprometendo a confiança, a imagem e a reputação do Estado.
Por outro lado, entende-se como integridade pública, o conjunto de ações institucionais que visam garantir que a administração pública alcance seus objetivos, entregando resultados à sociedade de maneira imparcial, transparente e eficiente, mas alicerçado em princípios de moralidade e ética.
Deste modo, ao servidor público se espera uma conduta íntegra, ou seja, dentro de um padrão de moralidade, retidão ética e honestidade, pois é a conduta do servidor é que irá gerar a confiabilidade do cidadão e repercutirá na imagem da administração.
Historicamente, a definição de integridade estava muito mais ligada às questões patrimoniais ou, quando muito, aos temas de moralidade pública que tinham consequência direta no erário.
Entretanto, atualmente, entende-se que a boa gestão pública também deve preocupar-se com a preservação de padrões éticos e eficiência administrativa de modo geral, para além do combate à corrupção, ao nepotismo e à boa administração do erário. Em suma, a integridade passa pela ideia de que nenhum interesse privado pode se sobrepor ao interesse público e para isso se faz imprescindível a criação de mecanismos de prevenção, detecção e remediação de desvios éticos e de conduta que violem ou desrespeite direitos, valores e princípios[3].
Por estas razões, em 2022, o Tribunal de Contas da União (TCU) decidiu incluir as análises sobre assédio sexual e moral em auditorias a serem realizadas em órgãos da administração pública, considerando-se que ambas as formas de assédio, moral e sexual, são extremamente perversas e afetam tanto a saúde do servidor quanto à moralidade da Administração[4]. Consta da decisão, o compromisso da Corte de Contas em “assumir o protagonismo na divulgação de boas práticas e na definição de critérios acerca do combate ao assédio moral e sexual”, com “práticas, dados e estudos que poderão ser aproveitados por todos os órgãos públicos”.
Resta claro que com a apontada decisão, o Tribunal de Contas pretendeu demonstrar que se estabeleceu uma nova era para a análise da integridade pública, além de contribuir com uma mudança cultural e ética.
Nessa mesma esteira, a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), em 2017, já havia estabelecido recomendações para que os países-membros desenvolvessem políticas e legislações eficazes para combater a discriminação e o assédio no trabalho.
Ainda no âmbito internacional, a Organização Internacional do Trabalho (OIT) por meio da Convenção sobre a Eliminação da Violência e do Assédio no Mundo do Trabalho (Convenção 190) define assédio sexual no artigo 1º da seguinte forma:
- a) o termo “violência e assédio” no mundo do trabalho refere-se a um conjunto de comportamentos e práticas inaceitáveis, ou se suas ameaças, de ocorrência única ou repetida, que visem, causem ou sejam susceptíveis de causar dano físico, psicológico, sexual ou econômico, e inclui a violência e o assédio com base no gênero;
- b) o termo “violência e assédio no gênero” significa violência e assédio dirigido às pessoas em virtude do seu sexo ou gênero, e inclui o assédio sexual.[5]
A referida Convenção 190, a qual o Brasil é signatário, é um importante marco no reconhecimento do assédio no ambiente laboral como violação de direitos humanos e traz ainda a previsão de uma série de ações e diretrizes para o enfrentamento da violência e do assédio no trabalho a serem implementadas pelos Estados-membros.
No direito interno, a instituição de políticas de combate ao assédio atende aos ditames constitucionais previstos nos artigos 1º, III e IV, 5º, X e 6º da Constituição Federal que preveem a proteção à dignidade da pessoa humana, à saúde, à honra, ao trabalho digno e ao valor social do trabalho.
Em 2023, foi sancionada a Lei Federal 14.540/2023, que instituiu o programa de prevenção, enfrentamento ao assédio sexual e demais crimes contra a dignidade sexual no âmbito da administração pública direta, indireta , federal, estadual, distrital e municipal, propondo o desenvolvimento de mecanismos de combate ao assédio sexual por meio de capacitação dos agentes públicos, campanhas educativas, criação de políticas de boas práticas para a prevenção ao assédio; divulgação de canais de denúncia e implementação de políticas públicas para prevenção, apuração e punição em caso de denúncias.
Entretanto, é importante destacar que, como toda política de integridade, sua instituição não pode ser meramente formal, apenas com a instituição de programas de combate ao assédio, sem, por exemplo, garantir independência para os comitês ou qualificação necessária para quem a executa, ou seja, pensar em uma cultura de integridade que tenha em mira o combate ao assédio no setor público implica em demonstrar uma preocupação genuína com o tema.
Por outro lado, é essencial que haja também uma atuação constante para a criação de uma nova cultura organizacional com informação e educação, porque a prevenção evita que o assédio ocorra, pois quando a violência ocorrer, mesmo que punida, já teremos uma vítima, uma dor e uma mácula na administração.
Diante disto, para a eficiência e confiabilidade de qualquer política de combate ao assédio, é muito importante que os órgãos da Administração Pública adotem um plano que tenha minimamente:
- setor independente do RH, das corregedorias ou dos gestores;
- existência de local para recebimentos das queixas;
- orientação para os servidores de como apresentar as denúncias;
- programa de ações para a implementação do plano e avaliação de riscos já existentes;
- política de proteção, escuta qualificada e não revitimização de vítimas, denunciantes e testemunhas;
- prioridade de tramitação da apuração;
- mecanismos de prevenção, de detecção, desde as micro agressões até violências mais graves, investigação e punição;
- capacitação permanente dos agentes envolvidos no programa.
Assim, estabelecer uma política de prevenção e combate ao assédio é um dos pilares da integridade pública, lembrando-se que a prevenção por meio de educação, informação, canal seguro de denúncia e acolhimento são essenciais para que o assédio seja definitivamente extirpado do serviço público, garantindo um ambiente de trabalho digno, que certamente se refletirá nas entregas de políticas públicas à população e fará da administração pública um paradigma para toda a sociedade.
[1] Davis, Angela, Mulheres, Raça e Classe, Editora Boitempo, 1a edição, São Paulo, 2016.
[2] Fórum Brasileira de Segurança Pública, Visível e invisível: a vitimização de mulheres no Brasil, 5ª edição, 2025. Extraído de https://publicacoes.forumseguranca.org.br/handle/123456789/269. Acesso em 27/05/2025.
[3] Artigo 3º do Decreto nº 11.529/2023
[4] AC- 0456-08/22-P, TCU – Plenário, Processo nº TC 041.890/2021-3, Relator: Ministro Walton Alencar Rodrigues, j. 09/03/2022.
[5] A Convenção 190 da OIT foi adotada na Conferência Internacional da OIT em 21/06/2019 e entrou em vigor em 25/06/2021, já foi ratificada por dez países. O Brasil até a conclusão deste artigo não havia ratificado