O uso de instrumentos de consenso como forma de gestão da coisa pública (acordos, contratos, termos de ajuste de conduta, entre outras figuras) vem sendo bastante estimulado, e é uma das principais características do Direito Administrativo nas últimas décadas.
Na expressão do professor britânico Peter Vincent-Jones, que trata o movimento como “New Public Contracting”, a contratação pública “saiu da periferia logística das ações do governo para a principal arena da formulação de políticas”.
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A administração consensual ganha espaço na legislação, em escritos acadêmicos, nos pronunciamentos de lideranças dos três poderes, mas trava na prática. Quem milita dia a dia perante órgãos públicos percebe forte resistência na adoção de soluções que busquem encerrar situações litigiosas via acordos, em diferentes esferas (com destaque para a atividade sancionatória).
Arrisco-me a apontar algumas razões centrais para isso, a partir de minha experiência pessoal. Em primeiro, a falta de regulamentação infralegal. Na maior parte dos órgãos, não há regras internas estabelecendo parametrização de benefícios, prazos, passo a passo, instâncias de aprovação. Ou seja, a regulação consensual, paradoxalmente, trava pela falta de regulação.
Deixo uma provocação: se a ideia é fazer a regulação por meio de acordos, por que não usar as cláusulas do próprio acordo para isso? Não podemos abandonar o vício da regulação prévia de tudo? Regular por consenso é exatamente isso. A legislação deixa claro que a possibilidade de solução acordada é autoaplicável, não necessitando de regulamentação (ainda que ela possa ser útil, sem dúvida).
Um segundo ponto é a leitura equivocada do princípio da indisponibilidade do serviço público, pela qual não é dado à Administração Pública renunciar a absolutamente nada, seja de valores, seja do poder de aplicar sanções. A redução – ou dispensa – de uma multa, ou de um valor de indenização cobrado pela administração, é tida como uma lesão ao erário, vista com desconfiança por órgãos de controle e pela opinião pública, por vezes virando matéria de jornal.
Frente a este risco, ao invés da opção por receber valor de maneira certa e imediata (porém com abatimento), opta-se por persistir na cobrança de quantia incerta, ilíquida, sujeita a anos de discussão, prescrição, insolvência do devedor, entre outros fatores. Tudo em nome de um suposto interesse público que não transige (e que perde quantias substanciais pelo caminho).
A mudança passa por uma compreensão mais pragmática do que efetivamente pode ao fim e ao cabo beneficiar o governo (e definitivamente, o litígio a qualquer custo já se mostrou péssima opção).
Terceiro, o simples medo de ser o primeiro, de fazer algo que ninguém fez antes. No setor público, ser pioneiro é arriscado, atrai escrutínio adicional e a necessidade de justificação muito mais profunda do que simplesmente deixar tudo como está. O benefício, por sua vez, nem sempre é palpável de pronto, e pode levar anos para que seja notado.
É mais cômodo ser o segundo, após algum desbravador já ter percorrido este caminho. Se o desbravador não surgir, nada muda. É necessário estimular a inovação no campo das soluções negociadas, protegendo iniciativas bem-intencionadas (ainda que envolvam algum risco), punindo má-fé e erros grosseiros.
Estes fatores travam a consolidação do consensualismo, mesmo com todo clamor por sua utilização mais frequente. Claro, há avanços. Órgãos como a Secex-Consenso no TCU e a Compor na ANTT buscam superar estes entraves, já trazendo bons resultados (com notáveis dificuldades, como bem demonstra a repercussão pública de alguns casos). Mas a regulação consensual precisa sair da retórica e ganhar escala, tornando-se efetivamente a ferramenta de gestão exitosa que tem potencial para ser. Precisa estar no topo da mente de agentes públicos e privados, já há base legal, faltam os incentivos adequados.