Pastor organiza partidas noturnas em cidade que vive explosão da criminalidade
Este conteúdo foi originalmente publicado em Como o futebol pode resolver crise de gangues na Suécia no site CNN Brasil. Futebol Internacional, CNN Esportes, Futebol internacional, gangues, Suécia CNN Brasil
Todos os sábados à noite, o pastor Robert Wirehag organiza partidas de “futebol noturno” em Gottsunda, subúrbio da cidade de Uppsala, a quarta maior da Suécia.
Uppsala é conhecida como cidade universitária tranquila, a cerca de 70 km de Estocolmo. Mas em Gottsunda, os jovens em campo estão longe dos ambientes acadêmicos.
Wirehag estima que todos os meninos de 12 a 17 anos que participam do projeto estejam em risco de recrutamento por gangues.
“Eles moram em um bairro específico e estão vulneráveis. Alguns já fazem parte de gangues, outros estão a caminho”, diz o pastor à CNN.
Pobreza e falta de oportunidades alimentam o crime
As partidas acontecem em áreas com poucos empregos e barreiras de idioma, terreno fértil para o crime, segundo Wirehag.
“Sem dinheiro, sem ocupação significativa, cresce o risco de aderirem a estilos de vida criminosos. Por isso, agimos justamente nas noites de sábado”, afirma.
Um dos jovens no dia da visita da CNN é Abdulraof Alchaieb, ou Abudi, de 18 anos. Para ele, a disputa em campo é intensa: “É uma guerra”.
Abudi também joga pelo time sub-19 do Sunnersta AIF e diz que o futebol o afastou da criminalidade. “Se não fosse por isso, talvez eu tivesse caído nesse mundo.”

A rotina da criminalidade e o uso de menores por gangues
Wirehag tentou escolher os times para evitar que alguém fosse o último escolhido, mas os garotos se revoltaram. Desde então, eles próprios definem as equipes.
Abudi conta que amigos foram enganados por criminosos: “Eles pedem pra entregar uma sacola. Quando você vê, já está segurando drogas.”
“Os que pareciam seus amigos podem te trair. Já vi gente que não conseguiu sair. Quando você quer sair, eles vão atrás. Às vezes, você morre.”
A violência cresceu no início do ano. Em janeiro, a Suécia registrou mais de uma explosão por dia, sem contar tentativas frustradas ou abortadas pela polícia.
Cresce o recrutamento de jovens e uso de explosivos
Explosivos são comuns em extorsões e conflitos. Bombas caseiras, fogos ilegais e granadas são facilmente acessíveis.
Segundo a polícia sueca, criminosos recrutam jovens por meio de grupos digitais, oferecendo tarefas rápidas com promessas de dinheiro fácil.
Hanna Paradis, ex-chefe da operação especial “Frigg”, afirma: “A criminalidade em rede existe em todo o país. O ritmo está acelerado.”
Relatório de 2024 estima que 62 mil pessoas tenham vínculos com redes criminosas. “Hoje, os jovens são recrutados mais rápido”, diz Paradis.

O crime virou um “bico” para menores, diz especialista
Para Dennis Martinsson, especialista em direito penal, as gangues criaram uma “economia de bicos” com promessas de dinheiro e status.
“Eles postam tarefas em apps. Jovens aceitam, mas muitas vezes não recebem nada mesmo que não sejam presos.”
Estudo de 2021 apontou que a Suécia tem uma das maiores taxas de mortes por armas de fogo na Europa, ligadas à criminalidade em áreas pobres.
Há 10 anos, a Suécia era um dos países com menor violência armada. Hoje, é o oposto. “É uma evolução maligna”, diz Ardavan Khoshnood, criminologista.
Crianças são usadas para matar e carregar armas
Preocupa o aumento de menores de 15 anos envolvidos em assassinatos. A Promotoria Sueca identificou triplicação desses casos em um ano.
“Líderes de gangues usam crianças para matar ou carregar explosivos. Já vimos meninos de 9 anos armados”, afirma o jornalista Diamant Salihu.
As penas são brandas: menores de 18 anos raramente vão à prisão. Em geral, ficam no regime de reclusão juvenil por até 4 anos.
Crianças abaixo de 15 não podem ser condenadas. Só recebem medidas sociais. Isso motivou proposta de reduzir a idade de responsabilidade penal.

Falta de integração social favorece o avanço das gangues
Salihu aponta que falhas de integração e brechas no sistema legal explicam o avanço do crime organizado nas periferias suecas.
“Bairros com pobreza, desemprego, baixo desempenho escolar e mercados de drogas abertos geraram uma tempestade perfeita.”
A violência afastou até clubes de futebol. “Sirius teve que cancelar jogos de base porque times de fora não queriam vir a Uppsala”, diz Wirehag.
Apesar dos riscos, o pastor continua indo a Gottsunda todo sábado. “Meus filhos me pedem pra não ir. Eles têm medo do que pode acontecer.”
Futebol como ponte entre jovens e a polícia
Wirehag acredita que o futebol pode criar vínculos sociais. Por isso, decidiu convidar policiais locais para assistir a uma das partidas.
Os jovens, porém, reagiram friamente. Muitos têm experiências negativas com policiais, inclusive em seus países de origem.
“Alguns são perseguidos injustamente por causa da origem. Eles não confiam na polícia”, diz Wirehag. A ideia é construir essa confiança pouco a pouco.
Durante o jogo, um garoto de 15 anos pergunta a uma policial o que acontece quando alguém é preso com drogas. Ela responde com paciência.
Projeto “Futebol sem fronteiras” tenta mudar destinos
Carina Neumann, policial comunitária, diz que Gottsunda enfrenta muitos conflitos. “Há tiroteios, explosões. Mas seguimos firmes.”
Apesar de prisões, o recrutamento de jovens continua. “A violência está mais brutal. Disputas pequenas terminam em morte.”
O projeto faz parte da iniciativa social do clube Sirius, chamada “Futebol sem fronteiras”. Além dos jogos, eles assistem a partidas profissionais.
Joakim Persson, da seleção sub-21 da Suécia, participa dos encontros. “Aqui se fala muito sobre respeito. Isso é essencial.”

Exemplo de superação inspira jovens em Gottsunda
Persson conta sua trajetória aos jovens. “Minha dica é: nunca desistam. Sempre vão existir obstáculos. Persistam.”
Abudi, agora convocado para a seleção sub-20 da Síria, credita seu caminho ao futebol noturno. “Me afastou de tudo que era errado.”
“Não foi só comigo. Ajudou muita gente. Isso deveria existir em todas as cidades da Suécia”, afirma o jovem jogador.
Em uma segunda visita, Wirehag mostra uma nova quadra, a poucos metros da anterior. “Não me sinto seguro lá. Nem os garotos.”
Mudança de quadra reflete tensão no território das gangues
Gangues locais não saem de Gottsunda por medo de inimigos. Por isso, mudar de quadra – mesmo que por 400 metros – faz diferença.
“O futebol ainda enfrenta desafios. Muitos meninos não estão mais aqui: saíram da cidade ou foram cooptados por gangues”, lamenta Wirehag.
Mas o pastor celebra os que continuam. “A maioria segue com a gente. Precisamos mostrar que há mais na vida.”
“Se daqui 10 anos eu perceber que salvamos só um garoto, já terá valido a pena”, conclui.
Este conteúdo foi originalmente publicado em Como o futebol pode resolver crise de gangues na Suécia no site CNN Brasil.