No último dia 3 de abril, o Supremo Tribunal Federal concluiu o julgamento da ADPF 635, que trata da alta letalidade em operações policiais nas favelas do Estado do Rio de Janeiro. A decisão é inovadora em diferentes aspectos. O mais evidente, e que provavelmente será debatido por um bom tempo entre acadêmicos, é a adoção do modelo per curiam. De forma inédita, o tribunal produziu um voto unificado, redigido pelo ministro Edson Fachin e subscrito por todos os outros ministros[1].
Ao que parece, o julgamento per curiam ofuscou uma outra novidade relevante na decisão. Nela, ao reconhecer o caráter estrutural do litígio, o STF afirma que “há compromisso significativo por parte do Estado do Rio de Janeiro na cessação das violações mencionadas”, razão pela qual não haveria necessidade de reconhecer a existência de um “estado de coisas inconstitucional” (ECI)[2].
Assine gratuitamente a newsletter Últimas Notícias do JOTA e receba as principais notícias jurídicas e políticas do dia no seu email
Essa é a segunda menção à técnica do “compromisso significativo” em um julgamento do tribunal. A primeira ocorreu em 14.03.2024, no julgamento da ADPF 760, que tinha por objeto a política pública de proteção à Amazônia. Na ocasião e à semelhança do que ocorreu na ADPF 635, o STF afirmou a existência de falhas estruturais na referida política, mas ponderou que o Poder Público apresentava disposição para enfrentar o problema. Diante disso, em vez de reconhecer a existência de um estado de coisas inconstitucional[3], defendeu a necessidade de o governo federal assumir um compromisso significativo no tema.
A menção ao novo termo – compromisso significativo – pode deixar alguns leitores da decisão confusos. A expressão pode dar a errônea compreensão de que tal compromisso se refere apenas à boa vontade do Poder Público em corrigir as suas falhas. Longe disso.
O compromisso significativo é uma técnica dialógica utilizada pela Corte Constitucional da África do Sul, quando precisa decidir sobre questões estruturais ou de grande repercussão social e econômica. Foi utilizado pela primeira vez pela Corte africana em 2008, no caso Olivia Road[4]. A Corte determinou que a cidade de Joanesburgo e os demandantes da ação deveriam estabelecer entre si um compromisso significativo assim que possível, em um esforço para resolver as diferenças e dificuldades expostas na ação à luz dos valores da Constituição. Com isso, determinou-se que as partes dialogassem e criassem uma solução para o problema estrutural, que no caso envolvia o despejo de uma comunidade de 400 pessoas.
Após dialogarem por alguns meses, os demandantes chegaram a um acordo parcial. Dentre outras determinações, o governo municipal concordou em não realizar o despejo e implementar medidas que melhorassem os prédios e a vida dos seus moradores, como limpeza da área residencial, acesso à água e saneamento básico. A cidade também concordou em reformar vários outros prédios localizados na periferia, fornecendo serviços públicos essenciais para os moradores da região. Por fim, o governo aceitou continuar o diálogo no longo prazo, buscando soluções para os problemas de moradia[5].
No caso Olivia Road, a Corte fixou, ainda, alguns parâmetros para orientarem a realização do compromisso significativo. Sempre que uma política pública de larga escala, como um plano de recuperação, puder afetar negativamente algum segmento populacional, a municipalidade deve realizar tal compromisso logo no início do planejamento, ou seja, o diálogo com os cidadãos afetados não deve iniciar apenas na instância judicial, mas na própria etapa de planejamento da política pública.
A Corte também reconheceu a vulnerabilidade dos cidadãos afetados pelos despejos e a necessidade de representação especializada. Para lidar com essa desigualdade de poderes entre a população e o Poder Público, determinou que grupos da sociedade civil, atuantes na defesa dos direitos fundamentais afetados, têm um importante papel constitucional a desempenhar no procedimento[6].
Consideradas as decisões proferidas nas ADPFs 635 e 760, o STF parece disposto a utilizar a técnica em processos estruturais sob sua condução. A ideia é promissora, desde que alguns elementos da ideia original sul-africana sejam mantidos. Em primeiro lugar, o compromisso significativo não deve ser entendido apenas como sinônimo de boa-fé. Em Olivia Road, a Corte sul-africana utilizou a expressão “engage with each other meaningfully”. A técnica envolve um engajamento ativo, baseado na cooperação e no diálogo, para construir soluções para problemas complexos. Em vez de definir a solução para o problema, o Judiciário tem como principal função criar condições para que o diálogo aconteça.
Em segundo lugar, é preciso definir quem dialoga. A solução sul-africana não restringia a conversa apenas ao Judiciário e ao Executivo. Pelo contrário, os gestores públicos precisam dialogar com as comunidades afetadas pelo problema e seus representantes, ouvi-los e incorporar suas demandas e sugestões no plano final. Reduzir o compromisso significativo ao diálogo entre estruturas burocráticas esvazia completamente sua essência inicial e sua finalidade. A razão de ser de tal instituto é justamente construir soluções que não seriam possíveis sem incorporar as perspectivas de tais comunidades e que, justamente por isso, tendem a ser mais efetivas.
Em terceiro lugar, é preciso estruturar diretrizes sobre como o diálogo vai ocorrer. A Corte sul-africana ressaltou a diferença informacional entre os gestores públicos e as comunidades afetadas. Ordens genéricas de diálogo, sem estabelecer uma metodologia que equilibre a conversa entre as partes envolvidas, podem favorecer as instituições que já estão sendo responsáveis pela violação de direitos fundamentais e comprometer a participação de grupos mais vulneráveis.
Isso porque tais grupos têm níveis diversos de poder político, social e econômico, menor acesso a informações ou dificuldade de apoio técnico [7]. Nessa linha, é papel do Judiciário fixar critérios para que haja uma troca efetiva de pontos de vista e experiências, bem como acompanhar o procedimento que está sendo utilizado para o diálogo.
Em quarto lugar, ainda que o compromisso significativo detenha uma capacidade limitada de resolver todos os problemas de uma ação estrutural, ele pode reduzir sua complexidade mediante acordos parciais[8]. Isso significa que o diálogo pode resolver problemas graves antes do julgamento de mérito. Isso ocorreu durante a condução da própria ADPF 635.
O Núcleo de Processos Estruturais e Complexos (NUPEC) e o Núcleo de Solução Consensual de Conflitos (NUSOL) realizaram diversas audiências de contextualização[9] entre a parte autora, o Estado do Rio de Janeiro, o Ministério Público e a Defensoria Pública do Estado, o Ministério Público Federal e os amici curiae. Nas audiências, buscava-se debater as dificuldades encontradas na redução da letalidade, ouvir sugestões das partes e favorecer a definição de compromissos e prazos pelo Estado do Rio de Janeiro.
Em seis meses de audiências, o governo estadual criou diferentes atos normativos sobre temas controversos da ação, como: a organização e diretrizes para a gestão de serviços de atendimento psicológico no âmbito das polícias civil e militar; diretrizes e organização da gestão dos sistemas de controle de armamentos, munições e materiais bélicos de uso exclusivo das polícias civil e militar; e o protocolo de segurança e gestão integrada de prevenção a incidentes em unidades escolares da rede estadual de ensino público[10].
Tais atos concretizaram múltiplos “acordos parciais” das partes em torno de temas com razoável consenso, que permitiram uma redução progressiva da complexidade do problema.
Em quinto lugar, além de uma alternativa interessante para criar soluções para problemas complexos, o compromisso significativo também possui um potencial ainda inexplorado. Pode ser um instrumento para regular e promover o encerramento de processos estruturais. Como já se observou em trabalhos anteriores, o objeto de um processo estrutural não é alcançar um estado ideal de coisas na implementação de direitos ou conferir soluções definitivas para falhas estruturais. A implementação de certos direitos e a superação de tais falhas dependem, de modo geral, de políticas públicas a serem continuamente avaliadas e reformuladas, o que não é o papel do Judiciário.
Nos processos estruturais, a função do Judiciário é, sobretudo, desbloquear o diálogo entre diferentes autoridades, aproximar distintos atores e promover a sua cooperação, a fim de que restabeleçam uma atuação funcional e cooperativa no tema e atuem conjuntamente na sua solução. Uma vez superada a situação de bloqueio institucional e estabelecida uma dinâmica de cooperação, as instâncias políticas são as mais adequadas para seguir no debate, implementação e reavaliação das políticas públicas[11].
Frise-se: processos estruturais não têm o propósito de alcançar 100% da efetividade de implementação de direitos, mas sim de restabelecer as dinâmicas de diálogo necessárias para que tais direitos sejam implementados com maior efetividade pelas instâncias políticas. Isso significa que eles podem e devem ser encerrados mesmo que ainda existam déficits de implementação, desde que as circunstâncias indiquem que se alcançaram condições mínimas de funcionamento autônomo da via política no assunto, sob pena de jamais se encerrarem.
A formulação de um compromisso significativo pode auxiliar bastante nesse momento de extinção dos processos estruturais. As partes podem dialogar para estabelecer um cronograma de ação para ser implementado após o final do processo, fixar obrigações para as instituições envolvidas e até indicar entidades ou comissões não-judiciais para manter um monitoramento sobre a questão. Por ser um acordo formulado e homologado no processo, ele terá força vinculante para os celebrantes.
Para que cumpra tal papel, contudo, o instituto merece ser melhor delimitado e estruturado, definindo-se: (i) critérios de engajamento ativo dos desenvolvidos na busca por uma solução; (ii) definição de quem dialoga, considerada sua representatividade, expertise e diversidade de pontos de vista; (iii) regras para o diálogo que reduzam as assimetrias entre as partes; (iv) acordos parciais sobre providências que possam reduzir a complexidade da ação; (v) protocolo de encerramento do processo, quando as circunstâncias indicarem que as condições de diálogo e cooperação foram recuperadas perlas instâncias políticas.
Assim, o compromisso significativo oferece uma oportunidade ao STF de construir respostas para problemas estruturais, de um lado, considerando a experiência já vivenciada com o estado de coisas inconstitucional; de outro lado, lhe permite buscar eventualmente soluções mais brandas, que gerem maior percepção de deferência a instâncias políticas, à separação dos poderes e às capacidades institucionais. Vejamos como o compromisso significativo evoluirá na jurisprudência do tribunal.
[1] Embora o dispositivo da decisão e parte dos fundamentos tenham sido longamente pronunciados em sessão pública do STF, gravada pela TV Justiça, e sujeitem-se a publicação, parte do processo decisório ocorreu de forma interna, o que levantou controvérsias e críticas à Corte.
[2]O ECI é uma técnica decisória desenvolvida pela Corte Constitucional da Colômbia, sendo utilizada quando há: (i) a violação grave e sistemática de diversos direitos fundamentais, vitimando um número significativo de pessoas; (ii) a permanente inércia das autoridades estatais, que negligenciam suas obrigações; (iii) a não adoção de medidas legislativas, administrativas ou orçamentárias necessárias à proteção dos direitos violados; (iv) a existência de um problema social cuja resolução requer a intervenção conjunta de diferentes instituições, demandando um esforço coordenado e complexo; e (v) a possibilidade de um congestionamento do Judiciário colombiano, caso todos os atingidos ajuizarem ações de tutela.
[3] Sobre o ECI, cf. BARROSO, Luís Roberto; MELLO, Patrícia Perrone Campos Mello. O Estado de Coisas Inconstitucional no Sistema Carcerário Brasileiro. In: Alberto Bastos Balazeiro; Afonso de Paula Pinheiro Rocha; e Guilherme Veiga (org.). Novos Horizontes do Processo Estrutural. Londrina: Thoth, 2024, v. 1, p. 35-66; CAMPOS, Carlos Alexandre de Azevedo. Estado de coisas inconstitucional. Salvador: Juspodivm, 2016.
[4] AFRICA DO SUL. Corte Constitucional da África do Sul. Occupiers of 51 Olivia Road, Berea Township, and 197 Main Street vs City of Johannesburg. Joanesburgo, 2008. p. 5. Disponível em: http://www.saflii.org/za/cases/ZACC/2008/1.pdf. Acesso em: 09 abr. 2025.
[5] LIEBENBERG, Sandra. Engaging the paradoxes of the universal and particular in human rights adjudication: The possibilities and pitfalls of ‘meaningful engagement’. African Human Rights Law Journal, 12, 1-29, p. 15, 2012.
[6] SERAFIM, Matheus Casimiro Gomes. Compromisso significativo: contribuições sul-africanas para os processos estruturais no Brasil. Belo Horizonte: Fórum, 2021. p. 105-106.
[7] LIEBENBERG, Sandra; YOUNG, Katharine G. Adjudicating social and economic rights: Can democratic experimentalism help?. In: GARCÍA, Helena Alviar; KLARE, Karl; WILLIAMS, Lucy A. (Ed.). Social and Economic Rights in Theory and Practice: Critical Inquiries. Nova York: Routledge Research in Human Rights Law, 2014. p. 237-257. p. 251-252.
[8] CAVALLAZZI, Vanessa Wendhaussen. Ministério Público e democracia: entre o compromisso de ajustamento de conduta e o compromisso significativo. Tese de Doutorado. Centro Universitário de Brasília, 2025. Mimeografado (no prelo). A possibilidade de acordos parciais foi especialmente destacada pela autora. O trabalho propõe, de forma inédita, adaptações ao compromisso significativo sul-africano para que seja utilizado pelo Ministério Público, como forma de estruturar o diálogo e obter maior efetividade na implementação de direitos fundamentais. Ali, a estratégia de múltiplos acordos parciais é especialmente recomendada como forma de “ganhar tração” quanto a medidas de mais rápida implementação para a solução do problema estrutural.
[9] “A audiência de contextualização, de natureza multifuncional, objetiva: (i) colher informações para subsidiar a tomada de decisão; (ii) alinhar expectativas dos envolvidos; (iii) elucidar dúvidas e possibilitar esclarecimentos para todos; (iv) identificar de forma mais precisa o alcance das determinações impostas nas decisões estruturais; (v) auxiliar no monitoramento do cumprimento da decisão estrutural; (vi) propiciar que cumprimento da decisão seja mais compatível com a realidade fática e concreta e com as reais possibilidades de cumprimento; (vii) viabilizar consensos acerca de pontos específicos; e (viii) possibilitar uma atuação coordenada entre os entes envolvidos no cumprimento”. NAVARRO, Trícia. Audiência de contextualização: um novo formato de diálogo processual. Jota, 2024. Disponível em: https://www.jota.info/artigos/audiencia-de-contextualizacao-um-novo-formato-de-dialogo-processual. Acesso em: 10 abr. 2025.
[10] É possível verificar uma síntese dos avanços obtidos em Nota Técnica produzida pelo NUPEC e juntada aos autos. Cf. BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 635. Nota Técnica do NUPEC. Disponível em: https://redir.stf.jus.br/paginadorpub/paginador.jsp?docTP=TP&docID=778349595&prcID=5816502#. Acesso em: 10 abr. 2025.
[11] CASIMIRO, Matheus; NAVARRO, Trícia; MELLO, Patrícia Perrone Campos. O processo estrutural no STF: quando e como encerrá-lo? Jota, 28 nov. 2024; CAVALLAZZI, Vanessa Wendhaussen. Ministério Público e democracia: entre o compromisso de ajustamento de conduta e o compromisso significativo. Tese de Doutorado. Centro Universitário de Brasília, 2025. Mimeografado (no prelo).