O Supremo Tribunal Federal tem incorporado cada vez mais práticas de conciliação na gestão de conflitos, inclusive no controle abstrato de normas. Mecanismos originalmente concebidos para resolver disputas entre partes privadas estão hoje presentes em litígios constitucionais de alto impacto. Esse movimento suscita uma questão fundamental: a consensualidade é compatível com a natureza e a função da justiça constitucional[1]?
Owen Fiss, em seu clássico texto “Contra o Acordo”[2], externava uma preocupação que ainda merece nossa atenção. Para Fiss, a jurisdição é o mecanismo essencial para afirmar valores constitucionais. Os acordos, embora possam ser considerados soluções pragmáticas para os litígios, podem ocultar desigualdades e frustrar a justiça, especialmente para grupos vulneráveis.
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No âmbito constitucional, essa preocupação se intensifica. Seguindo o pensamento de Fiss, poderíamos nos perguntar: se o juiz é o guardião da Constituição, pode ele permitir que direitos sejam negociados? Considerando que a jurisdição não é delegável e os direitos não são negociáveis, pode-se responder que o juiz constitucional deve aplicar a norma superior, não facilitar acordos.
Considero, contudo, que podemos ter outro olhar sobre a questão.
Devemos reconhecer, primeiramente, que a Constituição não é um texto congelado. Sua eficácia depende da capacidade de organizar a vida plural e sustentar a convivência democrática. Nesse plano, é bastante conhecido o pensamento de Jon Elster (e a metáfora de Ulisses e as Sereias), que situa a Constituição como uma construção social voltada a restringir escolhas e firmar pré-compromissos para nos proteger de paixões, mudanças de preferência decorrentes de maiorias ocasionais ou inconsistências temporais. E a Constituição assim opera regulando os aspectos mais fundamentais da vida política, criando a moldura e a estrutura da ação política[3].
E refletir e concretizar os limites da atuação política é um desafio que se põe cotidianamente numa sociedade plural e democrática, sendo a Constituição um ponto de referência necessário e fundamental para essa reflexão e atualização. É dizer, a Constituição, com sua pretensão de perenidade, não pode ser encarada como a tentativa de as gerações passadas controlarem as gerações futuras, mas como norma fundamental que faz sentido hoje, para regular as bases de nossa convivência social e política numa sociedade que pretende ser plural e democrática.
Essa digressão contribui para compreender as dificuldades inerentes à concretização dos valores constitucionais e os desafios que se impõem cotidianamente perante o Supremo Tribunal Federal para exercer o seu papel inegociável de intérprete e guardião da Constituição.
Numa sociedade pluralista e democrática, o STF, atuando como um Tribunal Constitucional, conquanto deva ter capacidade de agir contra decisões políticas incompatíveis com as normas constitucionais, com base em argumentos jurídicos, não deve substituir-se às instituições democráticas.
Igualmente, como adverte Zagrebelsky, a jurisdição constitucional não deve ser vista como uma instituição democrática, mas como instituição republicana[4]. Constituindo limites e garantias contra “as degenerações da democracia como puro regime da maioria, da maioria onipotente, da maioria onívora”, a “justiça constitucional não faz parte da democracia, mas serva a democracia”[5].
Com essa preocupação, têm-se pensado em alternativas que devolvam às instâncias políticas e democráticas o protagonismo político, sem descurar do relevante papel desenvolvido pelo Tribunal Constitucional.
É conhecida a proposta de Mark Tushnet, de que a jurisdição constitucional deve promover a interação legislativo-jurisdição constitucional no processo decisório de questões constitucionalmente sensíveis, privilegiando a legislatura como espaço decisório final sobre as questões políticas e reconhecendo que outros Poderes também são legítimos intérpretes da Constituição[6].
Nesse mister, o Tribunal Constitucional deve lançar mão de remédios brandos de jurisdição constitucional, que incitam a constante interação entre legislaturas e Tribunal Constitucional acerca da correta interpretação da Constituição, não havendo, a priori, a definição de quem dará a última palavra.
A interpretação constitucional deve ser dialógica, aberta à construção institucional. O núcleo dessa ideia reside na necessidade de processos deliberativos que envolvam não apenas o STF, mas também os demais poderes do Estado e a sociedade. Sob essa perspectiva, a consensualidade não é um fim privatista, mas uma forma de coordenação institucional para concretizar a Constituição.
O problema não está, portanto, em saber se pode haver acordo, mas em como esse acordo é estruturado, sobre o que ele se opera e que valores ele reforça.
Podemos compreender a consensualidade na jurisdição constitucional como a constituição de espaços de diálogo institucional supervisionados judicialmente, orientados a estabelecer um acordo sobre fatos, implementar deveres constitucionais ou contribuir para superar impasses ou omissões de outros Poderes. Enfim, facilitar o processo deliberativo. Como pontuou o professor César Landa na participação oral que fez no painel do ICON-S, espera-se que a Justiça também se empenhe na solução de problemas (e não apenas diga quem tem direito).
É preciso também diferenciar consensualidade de transação. O juiz não pode abdicar de seu papel de definir o significado constitucional. Mas pode – e em certos casos deve – abrir espaços para processos deliberativos que esclareçam como os mandamentos constitucionais serão cumpridos.
Mas existem muitos riscos. As audiências de conciliação podem, por exemplo, ser capturadas por agendas tecnocráticas ou se limitarem a rituais simbólicos de participação. Por isso, a legitimidade desses mecanismos depende de garantias processuais, transparência e participação efetiva dos grupos vulneráveis e um escrutínio qualificado na homologação de acordos.
Tendo isso em conta, a conciliação pode contribuir para as práticas deliberativas da jurisdição constitucional e do Supremo Tribunal Federal, reforçando o papel da corte na proteção da Constituição e no fortalecimento da democracia. Nesse plano, a consensualidade na jurisdição constitucional não consiste em negociar direitos, mas em possibilitar deliberação constitucional.
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Parte das ideias desenvolvidas neste artigo foram apresentadas, no dia 30/7/2025, no ICON•S 2025 Annual Conference, em painel coordenado por André Rufino do Vale, intitulado “Consensuality in Constitutional Justice: New Institutional Designs of Deliberation and Conciliation Practices in the Decision-Making Process of the Supreme Federal Court of Brazil”, com o tema “The Consensuality in Judicial Review and its (in)compatibility with the Principles of Separation of Powers and Supremacy of the Constitution”
[1] Sobre o tema, muito tem sido escrito ultimamente. Para visões distintas remeto para os textos de Miguel Godoy e Leonardo Soares (“Lições cruzadas: por que o STF erra ao promover conciliações em ações de controle abstrato?”, disponível em https://www.jota.info/stf/supra/licoes-cruzadas-por-que-o-stf-erra-ao-promover-conciliacoes-em-acoes-de-controle-abstrato) e de André Rufino do Vale (“Audiências de conciliação no STF: conciliações precisam ser compreendidas no contexto das práticas argumentativas da Corte”, disponível em https://www.jota.info/opiniao-e-analise/colunas/observatorio-constitucional/audiencias-de-conciliacao-no-stf. Ambos os textos trazem outras importantes referências bibliográficas para a discussão.
[2] FISS, Owen. Contra o Acordo. In: FISS, Owen. Um novo processo civil: estudos norte-americanos sobre jurisdição, constituição e sociedade. São Paulo: RT, 2004.
[3] ELSTER. Jon. Ulisses liberto: estudos sobre racionalidade, pré-compromisso e restrições. Trad. Cláudia Sant’Ana Martins. São Paulo: Ed. Unesp, 2009. Capítulo 2.
[4] Nas expressivas palavras de Zagrebelsky: “La democracia tiene sus instituciones: el pueblo, con sus organizaciones sociales, que se convierte en cuerpo electoral; los partidos, con sus presidentes, que se remiten al apoyo del pueblo y lo traducen en planes y propuestas; el Parlamento, que organiza al enfrentamiento y lo traduce en decisiones legislativas; el Gobierno, que las transforma en decisiones operativas y busca así el consenso para lo que hace; los medios de comunicación de masas, que dan expresión a las opiniones pero, sobre todo, controlan, canalizan y extraen del pueblo su estado de ánimo, dando así impulso incesante a la gran máquina de la democracia, con lo verdadero y falso que hay en ella. El deus ex machina se llama mayoría. Los tribunales, tal como los concebimos, están completamente fuera de este circuito y no deben entrar en él. Sin que ninguno se escandalice, podemos decir que las instituciones judiciales no forman parte de las instituciones de la democracia (…). Si por ‘república’ se entiende por el contrario el significado clásico de res publica como designación no de un modo o forma de gobierno, sino de la cosa objeto de gobierno, una cosa de todos, de todo el pueblo y así de nadie en particular; y si se entiende a su vez democracia como modo de gobierno de aquella cosa de todos, la expresión ‘república democrática’ asume un valor pleno y el adjetivo no resulta superfluo respecto al sustantivo (…). La democracia, en efecto, puede convertirse en el régimen de las facciones; una parte, aunque sea la mayoría, puede intentar funcionar como totalidad y así adueñarse de la cosa común, hacerla cosa propia (…). La justicia constitucional protege la república y por eso limita la democracia, porque sirve para preservar el carácter de especificación de la república. Su función es precisamente evitar que un, una parte, se adueñe de la ‘cosa de todos’, echando a la otra parte de la propiedad común.” (ZAGREBELSKY, Gustavo. Principios y votos. El Tribunal Constitucional y la política. Trad. Manuel Martínez Neira. Madrid: Editorial Trotta, 2008, p. 100-102).
[5] ZAGREBELSKY, Gustavo. Principios y votos. El Tribunal Constitucional y la política. Trad. Manuel Martínez Neira. Madrid: Editorial Trotta, 2008, p. 102, tradução livre.
[6] TUSHNET, Mark. Weak Courts, Strong Rights: judicial review and social welfare rights in comparative constitucional law. New Jersey: Princeton University Press, 2008, p. 22-25, 33-36.