A telessaúde no Brasil surgiu como um marco de modernização do sistema de saúde. Abrangendo uma ampla gama de serviços digitais — entre eles a telemedicina — tem como propósito aproximar pacientes e profissionais, reduzir distâncias e superar barreiras históricas de acesso.
Esse avanço foi consolidado pela Lei 14.510/2022, que estabeleceu princípios fundamentais, como a autonomia do profissional de saúde e a promoção da universalização do acesso dos brasileiros às ações e serviços de saúde.
Com notícias da Anvisa e da ANS, o JOTA PRO Saúde entrega previsibilidade e transparência para empresas do setor
Na telemedicina, que consiste na prestação de serviços médicos a distância com o uso de tecnologias digitais para avaliação, diagnóstico, acompanhamento e orientação de pacientes, cabe ao médico, diante do caso concreto, decidir a forma, a tecnologia e a periodicidade mais adequada para o atendimento. Trata-se de um modelo que combina eficiência, segurança e ampliação do acesso, especialmente para pacientes com mobilidade reduzida ou residentes em áreas remotas.
No entanto, paralelamente à Lei 14.510/2022, está em vigor a Resolução CFM 2.314/2022, que pode representar uma limitação aos avanços obtidos com a telessaúde. Ao obrigar pessoas com condições crônicas de saúde a realizarem consultas presenciais a cada 180 dias, o Conselho Federal de Medicina fixa um calendário rígido, sem respaldo técnico-científico comprovado e que pode divergir dos princípios da própria lei federal, a qual assegura a autonomia do profissional de saúde e a universalização do acesso aos serviços de saúde.
Essa exigência, à primeira vista, pode parecer uma medida de segurança assistencial — e certamente essa foi a intenção da norma. No entanto, na prática, pode se tornar uma barreira que desconsidera a realidade de milhões de brasileiros, tanto do ponto de vista clínico quanto territorial e estrutural.
Em diversas regiões do país, a telemedicina representa não apenas uma alternativa, mas muitas vezes a única forma de acesso à saúde, especialmente para pessoas com condições crônicas de saúde que enfrentam dificuldades de locomoção ou vivem em áreas com escassez de serviços médicos presenciais.
O conceito de “condições crônicas de saúde” ou de “doenças que requeiram acompanhamento por longo tempo” é amplo e heterogêneo, abrangendo desde situações estáveis, como a hipertensão bem controlada, até quadros mais complexos, como a esclerose múltipla ou determinadas doenças oncológicas. Estabelecer a mesma periodicidade obrigatória para todas essas condições pode não refletir a diversidade dos casos e a realidade assistencial do país.
Pessoas que mantém parâmetros clínicos estáveis por anos poderiam se beneficiar de maior flexibilidade em relação ao calendário aplicado a quem enfrenta situações clínicas instáveis e de maior risco. A prática médica se orienta por critérios técnicos e pela avaliação individualizada, buscando atender às necessidades específicas de cada paciente.
A norma criada e publicada em meio ao cenário de pandemia representou um grande avanço para a saúde digital no país. No entanto, já existem evidências científicas que demonstram os impactos positivos da telemedicina em diversos programas, especialmente aqueles voltados à ampliação do acesso à saúde, um direito constitucionalmente garantido.
Um exemplo é o projeto TeleNordeste, que realizou um estudo descritivo avaliando as interconsultas de cardiologia, neurologia, psiquiatria e endocrinologia ofertadas a unidades básicas de saúde. Entre novembro de 2022 e o período de análise, foram incluídos 572 pacientes, todos maiores de 18 anos, totalizando 847 interconsultas. Os dados mostram que 96,7% dos participantes tinham condições crônicas de saúde e que a mediana do tempo de espera para a consulta foi de apenas 7 dias. Além disso, em 565 casos a demanda foi totalmente resolvida sem necessidade de encaminhamento para serviços especializados.
Esses resultados reforçam o potencial da telemedicina para reduzir barreiras de acesso, otimizar recursos e garantir atendimento qualificado, especialmente para pessoas com condições crônicas de saúde que vivem em regiões com menor oferta de especialistas.
Com isso, ao estabelecer uma obrigatoriedade genérica de consulta presencial pelo médico assistente, sem levar em conta a real necessidade clínica, a norma pode se distanciar dos objetivos de ampliação do acesso à saúde no país e limitar a própria autonomia médica. Ao impor um calendário fixo, acaba por contrariar o princípio consagrado na medicina de que “a clínica é soberana”, segundo o qual as decisões devem ser individualizadas e guiadas pela avaliação profissional de cada caso.
Os impactos concretos da norma são evidentes. Pacientes que vivem em áreas remotas, já submetidos a grandes desafios de deslocamento, poderão ser obrigados a percorrer centenas de quilômetros para uma consulta que poderia ser realizada com segurança por meio da telemedicina. Usuários do SUS em situação de vulnerabilidade socioeconômica dificilmente conseguirão arcar com os custos de transporte e a perda de dias de trabalho. Pessoas com limitações físicas ou emocionais, como aquelas que sofrem com crises de enxaqueca, fibromialgia ou depressão, enfrentarão barreiras quase intransponíveis para manter o acompanhamento regular.
O resultado, como alertam diversas entidades — especialmente as voltadas ao cuidado de pessoas com condições crônicas de saúde, como a Crônicos do Dia a Dia — é a descontinuidade dos tratamentos, o agravamento de quadros clínicos, a sobrecarga do sistema público de saúde e a fragilização do vínculo terapêutico entre médico e paciente.
Há ainda um efeito menos visível, mas igualmente relevante. Ao impor consultas presenciais semestrais sem respaldo em necessidade clínica específica, o CFM acaba criando uma barreira territorial indireta. Médicos que atuam por telemedicina em diferentes regiões do país passam a enfrentar limitações práticas, já que cumprir a periodicidade exigida pode implicar deslocamentos inviáveis. Essa restrição reduz a concorrência entre prestadores de serviços, limita a livre iniciativa e transfere ao paciente o ônus de uma regulação dissociada da realidade assistencial e geográfica do país.
A Constituição Federal assegura o livre exercício profissional, e a Lei da Liberdade Econômica veda a criação de barreiras artificiais ao mercado por meio de regulações desproporcionais. Assim, a exigência dos 180 dias não apenas contraria a lei federal que regula a telessaúde, como também pode afrontar princípios constitucionais e comprometer a racionalidade econômica do sistema de saúde.
A questão de fundo é a relação entre confiança e desconfiança. A Lei 14.510/2022 confiou ao médico o papel de decidir, no caso concreto, qual a melhor forma de conduzir o cuidado. A resolução do CFM, ao contrário, parte da desconfiança: presume que o médico não sabe ou não quer agir corretamente e transfere a decisão para um calendário uniforme. O paradoxo é que, ao tentar proteger o paciente, a norma acaba afastando-o do sistema de saúde.
Não se questiona a competência nem a legitimidade do CFM para zelar pela qualidade e segurança da prestação de serviços médicos no país. Entretanto, a disposição que impõe restrições à telemedicina parece conflitar com a Lei 14.510/2022, que regula o setor e, em seu art. 26-F, determina que qualquer ato normativo que limite a prestação desse serviço deve comprovar a imprescindibilidade da medida para prevenir riscos à saúde dos pacientes.
Até o momento, porém, não há relatórios técnicos ou análises de impacto que justifiquem, de forma individualizada, a obrigatoriedade de consultas presenciais para cada condição crônica ou de longo tratamento — cada uma delas com necessidades e dinâmicas clínicas próprias.
Além disso, a própria Resolução CFM 2.314/2022, que regulamenta a telemedicina, assegura em seu art. 4º a autonomia do médico para decidir quando utilizar esse recurso ou indicar o atendimento presencial, sempre orientado pelos princípios da beneficência, da não maleficência e pela responsabilidade ética do ato médico.
Nesse sentido, a imposição de um intervalo fixo de 180 dias cria não apenas uma contradição dentro da própria resolução, mas também um desalinhamento com os dispositivos legais que garantem a autonomia profissional e a ampliação do acesso à saúde.
Uma alternativa mais coerente seria a elaboração de diretrizes técnicas e de boas práticas por especialidade, fundamentadas em evidências científicas e planos de cuidado individualizados. Dessa forma, cada profissional poderia exercer sua autonomia de forma segura e orientada, assegurando qualidade assistencial e contribuindo para a modernização do SUS.
Assine gratuitamente a newsletter Últimas Notícias do JOTA e receba as principais notícias jurídicas e políticas do dia no seu email
O debate em torno da Resolução CFM 2.314/2022 passa, antes de tudo, pelo acesso à saúde e pela segurança do paciente. O desafio está em garantir que todos possam receber cuidados adequados, no momento certo, sem criar barreiras desnecessárias — e sempre com a devida proteção à vida e à integridade física.
A própria resolução, em harmonia com a Lei 14.510/2022, já oferece o caminho para esse equilíbrio: respeitar a autonomia médica e assegurar que a decisão sobre a forma, a tecnologia e a periodicidade do atendimento seja pautada por critérios técnicos e pelas necessidades individuais de cada pessoa. Cabe ao Conselho, portanto, promover esse alinhamento, utilizando os instrumentos legais e normativos existentes para construir um modelo que una segurança, acesso e inovação.