No último dia 13 de junho, a Corregedoria do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) editou o Provimento n. 197, que regulamenta as contas notariais, modalidade de conta escrow qualificada por segregação patrimonial e gestão fiduciária de terceiro imparcial dotado de fé pública.
A regulamentação do CNJ é passo decisivo de um movimento mais amplo, que retoma e expande a vocação histórica do notariado brasileiro, em percurso que começa muito antes do Provimento.[1]
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Contas escrow são, em essência, mecanismos de garantia. Consistem em contas de depósito geridas por terceiro fiduciário, com movimentação vinculada ao implemento de condições preestabelecidas — o cumprimento de uma obrigação acessória ou a obtenção de uma autorização administrativa, por exemplo.[2]
Até 2023, a inexistência de disciplina legal específica a seu respeito impedia o reconhecimento de regime de proteção que blindasse os valores depositados contra constrições judiciais promovidas por credores estranhos ao negócio. Não surpreende, pois, que seu uso permanecesse limitado a transações de alto valor ou a situações em que as partes antecipassem o risco da constrição.
Foi para suprir essa carência estrutural que o Marco Legal das Garantias introduziu a figura da conta notarial — modalidade especial de conta escrow gerida por notários e apartada do patrimônio das partes e do próprio tabelião. Pela primeira vez, valores depositados a título de garantia puderam ser juridicamente segregados, criando-se espaço autônomo, gerido por terceiro imparcial e protegido contra medidas constritivas externas.
Em pouco tempo, a inovação institucional encontrou ampla aceitação. Dados recentes do Colégio Notarial do Brasil (CNB) indicam que mais de 550 tabelionatos de notas já foram habilitados para prestar esse serviço, prestado em convênio estabelecido entre o CNB e o banco Safra.
A adoção da conta notarial no Brasil não constitui inovação exótica ou desviante em relação a experiências internacionais. Na Alemanha, por exemplo, notários são autorizados administrar contas vinculadas em nome próprio sempre que houver legítimo interesse de garantia.[3] A prática não se limita a operações imobiliárias, mas também desempenha papel relevante no campo societário.[4]
Na Itália, legislação específica atribui ao notário a guarda do preço de compra de imóveis até a transcrição da escritura, protegendo os contratantes, por meio também de segregação patrimonial, contra riscos de inadimplemento ou vícios formais.[5] Mesmo nos países de common law, onde a função é exercida por escrow agents privados, reconhece-se que a ausência de um corpo notarial robusto pode comprometer a segurança de operações econômicas — fragilidade que a literatura especializada associa a episódios de crise sistêmica.[6]
Apesar da experiência internacional acumulada e da receptividade da inovação no notariado brasileiro, persistiam dúvidas relevantes sobre o papel do gestor das contas, especialmente quanto à certificação de eventos e à atuação em caso de controvérsia.
Não era claro, por exemplo, se o notário deveria limitar-se a registrar manifestações das partes, e especialmente seu acordo a respeito da liberação dos valores depositados, ou se poderia declarar a verificação ou a frustração das condições a que a liberação houvesse sido vinculada. Também se questionava o grau de intervenção permitido ao notário em situações de inércia ou conflito, assim como sua responsabilidade em casos de omissão ou excesso.
Foi precisamente para enfrentar essas dúvidas que a Corregedoria do CNJ editou o Provimento 197. Seu objetivo declarado foi esclarecer o regime jurídico das contas notariais, definindo os deveres dos tabeliães e os limites da sua atuação.
O Provimento explicita o conteúdo do serviço prestado pelos notários, reafirma princípios que já constavam da legislação de regência e impõe salvaguardas adicionais em matéria de sigilo, transparência e prevenção à fraude. Sua leitura, no entanto, revela também uma interpretação restritiva da colaboração notarial — interpretação que parece conflitar, em alguns pontos, com o próprio texto legal.
De acordo com o Provimento, o notário deve atuar em conformidade com os princípios da legalidade, transparência, segurança jurídica, imparcialidade e boa-fé objetiva (art. 2º). Além disso, está sujeito a responsabilidade nas esferas cível, administrativa e criminal em caso de descumprimento desses deveres (art. 12), tal como já previsto nos arts. 22 a 24 da Lei 8.935 de 1994.
Para a prestação do serviço, exige-se o credenciamento do tabelião junto ao CNB (art. 5º). Cumpre-lhe orientar as partes sobre o funcionamento da conta notarial e elaborar requerimento de abertura contendo a qualificação dos contratantes, a descrição do negócio e a especificação das condições para liberação dos valores (art. 6º). Verificada a ocorrência dos eventos estipulados, caberá ao notário autorizar a transferência dos valores nos termos acordados (art. 8º).
Nos casos em que houver cláusula de confidencialidade, o tabelião deverá manter sigilo não apenas quanto ao conteúdo do contrato, mas também quanto à própria existência do negócio (arts. 13 e 14). Essa obrigação específica complementa o dever geral de sigilo previsto no art. 30, VI, da Lei n. 8.935 de 1994 e no art. 3º, XI, do Código de Ética de Notários.
A ênfase sobre o sigilo notarial é especialmente promissora. O resguardo institucional de informações sensíveis, formalmente atribuído ao notário, amplia o escopo da fé pública para além da publicidade. A partir do momento em que o notário é reconhecido como custodiante de informações sensíveis — investido de deveres funcionais de silêncio e proteção —, abre-se espaço para sua atuação em campos historicamente impermeáveis à colaboração notarial, de transações estratégicas à inovação tecnológica.
O Provimento 197 também estabelece limitações na gestão das contas notariais. Trata-se de disputa silenciosa, mas reveladora, entre a vocação pública do notariado e os riscos de captura e parcialidade. Seu art. 9º, § 1º proíbe o notário de emitir juízo sobre direitos controvertidos ou sobre a eficácia dos negócios celebrados, restringindo sua atuação à documentação de fatos verificáveis.
O art. 8º, por sua vez, indica que a verificação do implemento das condições de liberação dos recursos depositados deve ser atribuída em primeiro lugar às partes. Em caso de divergência, o notário deverá documentar a controvérsia e informar as partes sobre a necessidade de solução consensual ou judicial do impasse, mantendo os valores depositados até decisão definitiva (art. 9º, § 2º).
É possível compreender as preocupações que motivaram as limitações estabelecidas pelo Provimento, especialmente no que toca à neutralidade do notário diante de controvérsias estabelecidas entre as partes. A confiança, afinal, e isso tornou-se mais claro do que nunca nas últimas décadas, é um bem escasso, cuja má distribuição tende a ser fatal.[7] Ainda assim, essas limitações contrastam com o espírito das inovações trazidas pelo Marco Legal das Garantias.
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De acordo com o art. 7º-A da Lei 8.935 de 1994, introduzido pelo Marco Legal, os notários são competentes para certificar o implemento de condições negociais (inciso I) e podem, a pedido das partes, lavrar ata notarial para constatar sua ocorrência ou frustração (§ 2º). Interpretações extensivas das restrições impostas pelo Provimento — interpretações possíveis, ainda que sistematicamente indevidas — poderiam esvaziar essas competências, reduzindo o alcance prático da inovação legislativa. Por essa razão, é desejável que o CNJ reavalie a redação do Provimento, de modo a harmonizá-la com o texto legal e a afastar eventuais alegações de extrapolação normativa no exercício de sua função regulamentar.
O saldo, em todo caso, permanece bastante positivo. O Provimento 197 representa uma tentativa séria de compatibilizar inovação institucional com os princípios estruturantes da atividade notarial. O notário continua a ser, por definição legal, um agente de segurança jurídica, e a conta notarial, tal como concebida, reforça essa posição.
Ao conferir previsibilidade, autonomia patrimonial e proteção contra fraudes em negócios de cumprimento diferido, a regulamentação da conta notarial contribui para reposicionar o notariado brasileiro no centro do direito dos negócios — não mais como reduto de formalização passiva, mas como vetor ativo de colaboração.
[1] Alexandre Gonçaves Kassama, “Escrow notarial”: primeiras impressões, in Martha El Debs e Bernardo Chezzi, O novo Marco das Garantias: aspectos teóricos e práticos da Lei 14.711/2023, São Paulo: JusPodivm, 2024.
[2] Grazziella Mosareli Kayo, A conta vinculada (escrow account) em operações de fusão e aquisição: resolução de impasses sobre liberação dos recursos depositados, Dissertação (Mestrado Profissional em Direito) – FGV Direito SP, São Paulo, 2019.
[3] De acordo com os § 57 II 1 e § 58 da Lei de Documentação Notarial alemã (“Beurkundungsgesetz”) e com o § 23 do Código Federal para Notários (“Bundesnotarordnung”), notários podem aceitar, a título de depósito, dinheiro de contratantes desde que haja “legítimo interesse de garantia” (“ein berechtigtes Sicherungsinteresse”). Os notários são titulares exclusivos da conta bancária e apenas podem fazer movimentações nos termos fixados pelas partes.
[4] Giacomo Grezzana, O contrato de escrow em alienações de participação societária: uma análise comparativa entre os direitos brasileiro e alemão, Tese (Doutorado) – Universidade de São Paulo/Ludwig–Maximilians–Universität, São Paulo/München, 2025, p. 124.
[5] O “deposito del prezzo presso il notaio” encontra fundamento na Lei n. 147 de 2013. Francesco Della Rocca, Disciplina applicabile al contratto ‘escrow account’. Origine, funzione e caso concreto, Roma e America. Diritto romano comune online, Roma, v. 1, p. 125–159, 2023, p. 135.
[6] Referências na segunda nota do texto.
[7] As implicações de uma insidiosa escassez de confiança são exploradas na obra clássica de Onora O’Neill, Autonomy and Trust in Bioethics, Cambridge: Cambridge University Press, 2002.

