Desde que o presidente americano Donald Trump anunciou o aumento para 50% da taxa sobre produtos do Brasil e sanções contra autoridades brasileiras como o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Alexandre de Moraes, o governo brasileiro tem estudado como reagir. Todas as tentativas de lidar com o problema de forma diplomática falharam, então questionar as ações do presidente americano na própria Justiça dos EUA passou a ser uma das melhores saídas.
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No fim do mês passado (27/8), a Advocacia-Geral da União (AGU) anunciou que contratou o escritório internacional Arnold & Porter Kaye Scholer para entrar na Justiça americana em defesa dos interesses brasileiros. Foi necessária a contratação de um escritório americano para já que os advogados da AGU não têm autorização para atuar nos EUA.
Mas o quanto das ações de Trump é possível de fato bloquear por meio do sistema de Justiça americano? Quanta receptividade existe no Judiciário dos EUA para esse questionamento?
Recentemente, algumas decisões de juízes federais bloquearam ações de Trump tomadas por meio das executives orders (ordens executivas), equivalentes a decretos presidenciais no Brasil.
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No final de agosto , a Corte de Apelações do Circuito Federal dos EUA confirmou uma decisão anterior de outro tribunal de que a maior parte das tarifas por Trump a produtos importados são ilegais. Um grupo de pequenas empresas e uma coalizão de Estados democratas havia questionado o aumento nos impostos e obtido uma vitória no Tribunal de Comércio Internacional, que depois foi confirmada pela Corte de apelações.
Trump usou a Lei de Poderes Econômicos de Emergência Internacional de 1977 (IEEPA, na sigla em inglês) para fundamentar a criação da maior parte das tarifas — incluindo as taxas impostas ao Brasil, México, China e Canadá. As cortes decidiram que sua interpretação dessa legislação foi equivocada e que a lei não autoriza o presidente a tomar decisões que normalmente são atribuições do Congresso.
O bloqueio das cortes federais não conta para alguns produtos específicos, como aço e alumínio, cuja taxação é baseada em outra legislação.
Na quinta-feira (4/9), o governo Trump recorreu à Suprema Corte dos EUA, onde a nova maioria conservadora tem concedido vitórias à administração federal. Embora as sanções continuem valendo enquanto o caso está em julgamento, o governo Trump pediu uma tramitação acelerada da ação na Suprema Corte. A expectativa é que o tema seja colocado na agenda do Tribunal até novembro.
Essa barreira não foi a primeira que o governo Trump encontrou na Justiça federal do próprio país. No fim de julho, dois advogados americanos conseguiram bloquear parte dos efeitos de uma decisão de Trump que colocava sanções contra juízes e colaboradores do Tribunal Penal Internacional (TPI).
As sanções haviam sido determinadas em fevereiro, após o TPI ter emitido um mandado de prisão contra o primeiro-ministro de Israel, Benjamin Netanyahu, e o ex-ministro da defesa do país, Yoav Gallant, por crimes de guerra cometidos durante a mais recente guerra na Faixa de Gaza.
Trump colocou o procurador-chefe do TPI, Karim Khan, na mesma lista de sanções em que o ministro Alexandre de Moraes também foi incluído. Trata-se da lista da Agência de Controle de Ativos Estrangeiros dos EUA, a OFAC (Office of Foreign Assets Control, em inglês), órgão do Departamento do Tesouro que administra as sanções econômicas contra estrangeiros. Até os decretos recentes de Trump, a lista incluía apenas membros de grupos terroristas internacionais, traficantes de drogas e criminosos de guerra.
Também foram incluídos na lista a relatora especial da ONU na Palestina, Francesca Paola Albanese e outros quatro juízes do TPI. O decreto afirmava que outros colaboradores da Corte internacional poderiam sofrer sanções do tipo.
Depois, em agosto, outros dois juízes do TPI, a canadense Kimberly Prost e o francês Nicolas Guillou, e outros dois procuradores do Tribunal também foram incluídos na lista.
Foi contra esse tipo de sanção que dois advogados de direitos humanos dos EUA conseguiram uma liminar na Justiça. Mathew Smith e Akila Radhakrishnan, que costumam colaborar com o TPI, entraram com uma ação na corte federal do Maine alegando que as ações de Trump violavam o direito constitucional à liberdade de expressão deles.
Em 18 de julho, a juíza Nancy Torresen emitiu o equivalente a uma decisão liminar (preliminary injunction, na Justiça dos EUA) garantindo o direito de colaboração dos advogados com o TPI sem sofrer sanções.
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A decisão da corte federal, no entanto, tem validade apenas em favor dos cidadãos americanos que tiveram sua liberdade de expressão ameaçada — e não impede as sanções contra os juízes e procuradores do TPI que não são americanos, explica Orde Kittrie, professor de Direito da Universidade Estadual do Arizona.
“Torresen proibiu o governo Trump de aplicar a ordem executiva do TPI contra Matthew Smith e Akila Radhakrishnan, ambos cidadãos americanos residentes nos Estados Unidos, em resposta a qualquer prestação de serviços ao TPI que seja baseada em discurso (como análises, relatórios, pareceres etc)”, afirma Kittrie. “Torresen entendeu que esse tipo de sanção violaria a Primeira Emenda da Constituição dos EUA, que proíbe leis que ‘restringem a liberdade de expressão’”.
A entidade de defesa dos direitos humanos Justice Initiative, da Open Society Foundation, também entrou com uma ação contra os decretos de Trump contra o TPI em uma corte de Nova York. A juíza Katherine Polk Failla concedeu parcialmente o pedido da entidade, emitindo uma liminar em favor de diversos professores de Direito para impedir que eles sofram sanções do governo por sua colaboração com o TPI.
O caso do TPI não foi o único no qual o governo Trump encontrou uma barreira na Justiça federal dos EUA para suas ações de coerção contra quem vai contra seus interesses políticos. No início do ano, Trump começou uma cruzada contra grandes escritórios de advocacia que atuaram em favor de causas ou pessoas que o presidente americano pessoalmente desaprova.
Escritórios como Jenner & Block, Perkins Coie e Paul Weiss foram alvo de decretos que retiraram autorizações de atuação de seus advogados, restringiram seu acesso a prédios do governo e limitaram sua possibilidade de fechar contratos governamentais.
No caso do Jenner & Block, por exemplo, o motivo foi o escritório representar clientes que desafiam juridicamente políticas públicas de Trump. Também pesou o fato de a firma ter empregado um procurador que trabalhou em um conselho de investigação sobre o envolvimento da Rússia na campanha presidencial de Trump de 2016.
Enquanto alguns dos escritórios fizeram acordos com o governo — prometendo atuar pro bono em causas que Trump apoia — outros conseguiram bloquear os decretos presidenciais na Justiça.
Em março, dois juízes federais de Washington D.C. bloquearam as principais determinações de decretos de Trump contra os escritórios Jenner & Block e WilmerHale.
O juiz John Bates bloqueou as partes do decreto que buscavam cancelar contratos federais mantidos pelos clientes da Jenner & Block e restringir o acesso de seus advogados a prédios e autoridades federais. “São ações que ameaçam a própria existência do escritório”, afirmou Bates, que também qualificou as ações de Trump como “perturbadoras”.
Já o juiz Richard Leon disse que os danos causados à WilmerHale pelas ordens do presidente seriam graves “e afetariam seus clientes e o sistema de Justiça como um todo”. “O interesse público exige proteções contra ameaças dessa magnitude”, afirmou o magistrado em sua decisão.
Para Mark Ellis, diretor executivo da International Bar Association (entidade de classe da advocacia no âmbito internacional) as decisões no caso do TPI e dos escritórios de advocacia mostram alguma receptividade na Justiça americana para bloquear sanções de Trump que visam coagir seus desafetos.
“Temos visto que segmentos do Judiciário americano estão dispostos a defender direitos fundamentais, mesmo diante de pressões do Executivo”, afirma Ellis. “A decisão federal em favor dos advogados que colaboram com o TPI demonstram um princípio fundamental: mesmo em questões de política internacional, o poder do presidente não é absoluto e não pode se sobrepor a direitos constitucionais como os da Primeira Emenda da Constituição.”
Para Ellis, intervenções como as do caso do TPI ou do caso da perseguição de Trump contra escritórios de advocacia mostram que “ao menos parte do Judiciário está preparada para limitar excessos do Executivo” e garantir que “a independência dos advogados e os direitos dos cidadãos não podem ser subordinados a interesses políticos”.
Ao mesmo tempo, afirma, a Suprema Corte americana, agora dominada por uma maioria conservadora, tem sido mais submissa a demonstrações de autoridade presidencial.
“No caso Trump versus Hawaii (2018), a Suprema Corte manteve as restrições de viagem impostas a diversos países de maioria muçulmana, enfatizando a discricionaridade do governo em questões de imigração”, afirma Ellis.
O resultado, diz ele, é um cenário ambíguo. “Essa dualidade demonstra tanto a resiliência quanto a fragilidade do sistema jurídico americano: a intervenção judicial ainda pode salvaguardar direitos, mas a trajetória mais ampla nos níveis mais altos exige cautela. Os controles sobre o poder executivo são menos confiáveis do que já foram”, afirma.
Efeitos para o Brasil
A argumentação específica das decisões federais que barraram as ordens de Trump até agora não se aplicaria à defesa de autoridades brasileiras afetadas por sanções, como o ministro Alexandre de Moraes.
Isso porque as decisões foram em favor de cidadãos americanos — e estrangeiros fora do território americano não estão protegidos pelos direitos constitucionais, explicam especialistas em direito americano ouvidos pelo JOTA.
“A Suprema Corte dos Estados Unidos decidiu em 2020, no caso Department of Homeland Security versus Thuraissigiam, que estrangeiros fora do território americano não estão protegidos pelos direitos constitucionais. Na prática, isso significa que um cidadão estrangeiro (alien) sem residência legal ou presença estabelecida nos EUA, não pode invocar garantias para contestar medidas do governo norte-americano”, afirma o advogado Fabrício Polido, sócio do escritório L.O. Baptista e professor de direito internacional comparado da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
“A doutrina nos EUA explica que essa jurisprudência limita o alcance internacional da Constituição americana, reservando tais proteções apenas a pessoas sob a jurisdição direta dos EUA”, diz Polido.
No entanto, isso não significa que não haja caminhos na Justiça dos EUA para o Brasil questionar os decretos presidenciais – tanto as sanções contra autoridades brasileiras quanto medidas como a taxação de 50% dos produtos do Brasil.
O que o escritório escolhido pela AGU, o Arnold & Porter Kaye Scholer, provavelmente deve fazer é basear a argumentação na ilegalidade dos atos de Trump.
“O eixo argumentativo se desloca do campo constitucional para o campo do controle da legalidade do ato administrativo”, explica a advogada Daniela Poli Vlavianos, do escritório Arman Advocacia.
“A legislação norte-americana, por meio da Administrative Procedure Act (APA), permite a revisão judicial de atos administrativos quando se alega que a autoridade ultrapassou sua competência legal, que a decisão foi arbitrária ou desprovida de base fática, que houve falhas procedimentais ou que a medida configurou abuso de discricionariedade.”
De acordo com Polido e Vlavianos, o caminho das ações para defender os interesses brasileiros é nas cortes federais — especialmente na Corte Distrital do Distrito de Columbia (U.S. District Court for the District of Columbia), que costuma receber esse tipo de litígio contra órgãos do Executivo federal.
No caso das sanções, no entanto, antes de chegar na Justiça é obrigatório apresentar um pedido administrativo de exclusão da lista da OFAC. Somente após negativa ou demora injustificada da agência é que a Justiça Federal nos EUA pode analisar o caso.
“Indivíduos e empresas afetadas podem usar o Administrative Procedure Act (APA), lei que rege como o governo federal deve se comportar, para argumentar que a OFAC ultrapassou sua autoridade legal; agiu de forma arbitrária ou sem base em evidências; e violou procedimentos básicos de transparência”, afirma Fabrício Polido.
As chances de uma decisão favorável ao Brasil na Corte Distrital de Columbia são relativamente positivas, se levado em consideração somente o perfil de indicação dos juízes. Dos 15 juízes do tribunal, somente cinco foram indicados por Trump, que tende a indicar juízes mais conservadores e que concordem com o tipo de política tomada por ele, embora isso não seja garantido. Os outros 10 foram indicados ou por Barack Obama ou por Joe Biden, e tendem a ter perfil mais garantista.
No caso dos vistos retirados de algumas autoridades — como o do ministro Alexandre Padilha e de sua família, por exemplo — a possibilidade de uma contestação judicial ter sucesso é bem menor.
“No cenário norte-americano matérias como decisões em matéria migratória e similares são de cunho altamente discricionário”, afirma Ricardo Koboldt de Araújo, do escritório Mortari Bolico. “Nesta hipótese, mantida a discricionariedade do ato, fica aberta a via de um procedimento denominado waiver ou reavaliação através de fundamentação político-diplomática.”
De acordo com a AGU, o escritório contratado para defender o interesse brasileiro nos EUA deve atuar contra “quaisquer medidas de caráter punitivo aplicadas contra os interesses do Estado brasileiro, de empresas e de agentes públicos brasileiros”.
Isso inclui ações contra medidas como tarifas, denegações de visto, bloqueio de ativos e restrições financeiras, além da atuação em favor de órgãos da administração pública federal e na defesa dos interesses de estados e municípios.
“A AGU também poderá instruir o escritório a atuar na representação de agentes públicos quando, de acordo com a legislação brasileira, as sanções decorrerem do exercício da função pública”, afirmou o órgão, que não deu mais detalhes sobre as ações específicas ou estratégias que serão adotadas.