No clássico Crime e castigo, Dostoiévski explora a perigosa convicção de que alguns indivíduos — os “extraordinários” — estariam acima da moral comum. Para Raskólnikov, protagonista do romance, quebrar regras seria aceitável se o objetivo fosse o avanço da humanidade. Essa ideia, longe de ser meramente ficcional, encontra paralelo nas decisões de destacados membros do Judiciário, como o ex-juiz Sergio Moro e o ministro do STF Alexandre de Moraes.
São personalidades que aparentemente se enxergam como agentes históricos capazes de transformar o país. Em nome de um futuro próspero e democrático, recorrem a medidas que tensionam os limites da legalidade. Porém, quando a justiça se torna excepcional para servir a fins superiores, corre-se o risco de destruir os próprios alicerces da democracia.
Informações direto ao ponto sobre o que realmente importa: assine gratuitamente a JOTA Principal, a nova newsletter do JOTA
Não há a menor dúvida que o ex-presidente Jair Bolsonaro queria dar um golpe de Estado que, felizmente, não ocorreu. Aliás, ele nunca fez segredo da admiração que nutre por regimes autoritários, aqui e alhures. A dúvida é se ele iniciou a execução do crime (golpe de Estado) mas não o consumou por circunstâncias estranhas à sua vontade, o que seria punível com pena inferior à aplicável caso o crime tivesse sido efetivamente perpetrado, ou se ele apenas cogitou do crime, em cujo caso não haveria punição.
O detalhe fundamental é o começo de execução — ou seja, uma ação concreta que inicia o plano criminoso —, que se distingue da mera intenção. Essa exigência protege a liberdade individual e evita que o Estado penalize pensamentos ou desejos que, embora perigosos, ainda não colocaram a ordem jurídica em risco real. É uma defesa da liberdade de pensamento e da racionalidade do sistema jurídico.
Se a punição for de igual severidade para quem cogita e quem realiza ato criminoso, desincentiva-se a reflexão e estimula-se a ação. Afinal, se o castigo será o mesmo, por que não ir até o fim? Essa lógica compromete o efeito dissuasório da pena e pode, paradoxalmente, ampliar a criminalidade. No caso concreto, para condenar Bolsonaro é preciso ter provas de que houve tentativa e não mera intenção.
O ministro Alexandre de Moraes tem revelado a intenção de usar todo o peso da lei, supostamente em defesa da democracia. Porém, ao demonstrar envolvimento emocional no tratamento do caso, o ministro mostra compromisso com a defesa das instituições ou, embora sem intenção, compromete a própria democracia?
Não se insinua que Moraes decida apenas estribado na emoção. Até porque não é possível fazer justiça sem misturar uma pequena pitada de emoção à razão. Por exemplo, o ministro acertou ao atender o pedido da Advocacia-Geral da União para que se investigue a fantástica capacidade premonitória de desconhecidos e presumíveis especuladores que atuaram no último dia 9 de julho, pouco antes de Donald Trump anunciar o tarifaço de 50%. Compraram bilhões de dólares antes do anúncio e os venderam minutos depois, com lucro de centenas de milhões de dólares.
O que se argumenta é que o Brasil já vivenciou momentos em que autoridades acreditaram, como Maquiavel, que os fins justificam os meios — da ditadura militar, passando pela Lava Jato, chegando perigosamente perto do STF. Em todos os casos, o discurso tem sido parecido: “salvar o país”.
O resultado, porém, tem sido violações de direitos, uso seletivo da justiça e erosão da confiança pública. A autoconvicção dos “extraordinários” tem se mostrado tão perigosa quanto as ameaças que querem combater.
Punir de forma proporcional, respeitar as distinções entre intenção e ato, evitar o personalismo judicial — tudo isso não enfraquece o combate à criminalidade. Ao contrário, fortalece a confiança na justiça. A democracia não se constrói com heróis extraordinários, mas com instituições ordinárias e previsíveis.