O vídeo sobre a “adultização” de crianças publicado pelo youtuber Felipe Bressanim Ferreira, o Felca, já se aproxima das 40 milhões de visualizações e produziu uma quase unanimidade nacional. Em 50 minutos, o influenciador mostrou como produtores de conteúdo exploram crianças e adolescentes e como esses vídeos — e até outros postados inocentemente por pais amorosos — podem funcionar como um agregador de pedófilos.
Além disso, Felca escancarou como as redes sociais, por meio de seus algoritmos, facilitam a vida de pervertidos sexuais, ao treinar um perfil inventado por ele de improviso para buscar conteúdos com crianças.
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A ampla repercussão impulsionou o PL 2628/2022 do senador Alessandro Vieira (MDB-SE), que dispõe sobre a proteção de crianças e adolescentes em ambientes digitais. Bolsonarista de carteirinha, a também senadora Damares Alves (Republicanos-DF) defendeu que o PL seja votado pela Câmara, onde hoje tramita. A mesma posição expressaram os deputados Nikolas Ferreira (PL-MG) e Erika Hilton (PSOL-SP) – alvo preferencial do bullying do mineiro.
Ícones da oposição, o líder do PL na Casa, Sóstenes Cavalcante (RJ), e o líder do Novo, Marcel van Hattem (RS), fizeram uma ressalva envergonhada. “Se tiver qualquer sinal de censura, não vamos apoiar”, disse o primeiro. “Tem que ser para coibir crimes, não a oposição”, afirmou o segundo. Sob pressão, o presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), se comprometeu a pautar o PL de Vieira.
Mais uma virada na narrativa
No Palácio do Planalto, o vídeo de Felca caiu como um presente. A comoção gerada por ele abriu caminho para uma ideia fixa de Lula e seu entorno: a regulamentação das redes, presente inclusive em seu programa de governo de 2022.
Trata-se de mais uma reviravolta narrativa na política brasileira, dando continuidade a uma onda favorável ao petista. Depois de conquistar as bandeiras do nacionalismo e da defesa do Pix, antes nas mãos da oposição, agora Lula tem a oportunidade de encabeçar a defesa das crianças e adolescentes contra o abuso infantil. O vilão da vez, as redes sociais, o ajuda nessa tarefa.
Há sete anos, com Lula preso, a campanha de Fernando Haddad à Presidência foi flagelada por fake news como a famigerada “mamadeira de piroca” e a do “banheiro unissex” nas escolas públicas. O histórico da esquerda em defesa da pauta pejorativamente chamada de “identitária” dava força a esses rumores. E acabou por cristalizar a já crescente rejeição do eleitorado conservador a Lula e seu grupo.
Agora, é o bolsonarismo quem está na difícil posição de defender as redes sociais, um campo onde se sente à vontade, diante da evidente permissividade das plataformas a crimes como pedofilia, abuso sexual infantil e sexualização de crianças. Segundo interlocutores, Lula pretende surfar nessa onda, tentando abocanhar mais alguns pontos de aprovação, assim como ocorreu nos eventos relacionados ao tarifaço.
Janela de oportunidade para regulação das redes
Com o país em choque com o vídeo de Felca, abriu-se uma janela de oportunidade para o Planalto tentar emplacar sua velha nova pauta.
Em um tuíte no fim da tarde de quarta-feira (13/8), a ministra Gleisi Hoffmann (Relações Institucionais) delineou parte da estratégia: o PL 2628 de Alessandro Vieira, que versa exclusivamente sobre a exposição de crianças, é a porta de entrada; evitar a palavra “regulamentação”; e encaminhar ao Congresso outros dois projetos de lei que vêm sendo gestados há meses no Planalto, no Ministério da Justiça e na Fazenda. A previsão é que os textos sejam encaminhados ao Congresso na próxima semana.
Um deles versa sobre serviços digitais, com uma lógica voltada ao direito do consumidor. Inspirado nas rígidas regulações europeias, ele impõe obrigações às plataformas, como um Serviço de Atendimento ao Consumidor (SAC) humanizado, termos de uso mais claros, maior transparência nas publicidades, entre outras coisas. Sua abrangência cobre plataformas tão diferentes como o Tinder e o Mercado Livre, por exemplo.
O segundo empodera o Cade (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) para combater monopólios e evitar a concentração de mercados.
Mais problemas com Trump
Fontes no Palácio do Planalto preveem que, ao impulsionar essas pautas, o governo Lula se afundará ainda mais na briga com os Estados Unidos. A percepção geral é que a questão das big techs está no cerne da série de medidas adotadas pela Casa Branca contra o Brasil e as autoridades brasileiras.
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A teoria corrente no governo federal é que a Casa Branca está usando Eduardo Bolsonaro (PL-SP) para punir o Brasil e não o contrário. Por esse pressuposto, a situação jurídica de Jair Bolsonaro é apenas um pretexto para sancionar comercial e politicamente um governo que vem atuando de forma contrária aos interesses do Vale do Silício.
O Brasil também tem sido foco de preocupação para empresas como Visa e Mastercard. Estandartes do poderio econômico americano, elas estão perdendo um mercado bilionário para o Pix, ironicamente lançado no governo Bolsonaro.
O Supremo Tribunal Federal (STF), que decidirá o futuro carcerário do ex-presidente, é o mesmo que declarou parcialmente inconstitucional o artigo 19 do Marco Civil da Internet, permitindo que as plataformas sejam responsabilizadas por conteúdos criminosos mesmo sem ordem judicial. Com os canais fechados no Salão Oval, Lula está disposto a comprar a briga nesse campo, apesar do risco de mais sanções. Os problemas com Trump estão apenas começando.