O PLP 199/2024, atualmente em tramitação na Câmara dos Deputados, propõe uma delegação inédita de competência legislativa aos estados no âmbito do Direito do Trabalho.
De acordo com a proposta, caberia aos entes federativos legislar sobre aspectos como: contrato de trabalho temporário, sazonal ou intermitente; contrato de aprendizagem; normas sobre estágio; políticas de inserção de jovens e idosos no mercado de trabalho; regime de teletrabalho; mediação e arbitragem trabalhista; e normas relacionadas ao turismo colaborativo.
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Como advogado trabalhista, vejo com natural preocupação as potenciais consequências desse movimento, sobretudo no que diz respeito ao pacto federativo e à segurança jurídica das relações de trabalho.
A proposta encontra respaldo formal no artigo 22, inciso I, da Constituição Federal, que confere competência privativa à União para legislar sobre Direito do Trabalho, mas admite a delegação mediante lei complementar. Assim, sob o aspecto procedimental, não há inconstitucionalidade na tramitação do projeto.
O problema está na substância. Boa parte das matérias mencionadas já é objeto de normas gerais de caráter nacional, previstas na Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) e em legislação esparsa. A tentativa de fragmentar a competência normativa pode levar à criação de legislações paralelas e contraditórias, especialmente se considerarmos a possibilidade de 27 conjuntos normativos distintos (estados e Distrito Federal) regulando aspectos sensíveis da relação de trabalho.
O recente julgamento da ADI 7.148 pelo Supremo Tribunal Federal é elucidativo. Na ocasião, o STF declarou a inconstitucionalidade de legislação estadual de Rondônia que estabelecia diretrizes próprias para a contratação de aprendizes, invadindo a competência privativa da União. O parecer da Advocacia-Geral da União, acolhido pelo ministro Luís Roberto Barroso, foi categórico: ao estabelecer regramento paralelo, a norma estadual introduziu disciplina contraposta à legislação nacional, incorrendo em inconstitucionalidade formal.
Esse precedente não pode ser ignorado. A tentativa de permitir que os estados legislem sobre contratos de aprendizagem ou regimes de teletrabalho, por exemplo, cria evidente risco de sobreposição normativa e insegurança jurídica, prejudicando especialmente empresas que atuam nacionalmente.
O pacto federativo consagrado pela Constituição de 1988 privilegia a cooperação entre os entes, mas não autoriza a desorganização institucional. A fragmentação normativa compromete os objetivos fundamentais da República e o alcance efetivo dos direitos sociais previstos no artigo 6º da Constituição.
Como bem aponta a professora Ana Paula Barcellos em seu curso de Direito Constitucional, “a legislação estadual não será editada no exercício de uma autonomia estadual, mas por delegação, subordinando-se àquilo que a legislação federal tiver disposto e aos termos da autorização concedida”.
Ou seja, qualquer delegação normativa deve ser estritamente delimitada e acompanhada de parâmetros claros, evitando-se a criação de regimes jurídicos paralelos que comprometam a unidade do Direito do Trabalho no Brasil.
Hoje, a adaptação da legislação trabalhista à realidade regional já é possível por meio de instrumentos como convenções e acordos coletivos de trabalho, previstos na CLT. Embora esse sistema tenha passado por recentes mudanças e ainda demande aprimoramentos, trata-se de um mecanismo próprio e já testado de flexibilização, sem necessidade de fricção federativa.
A tramitação do PLP 199 exige, portanto, profunda reflexão sobre a prevalência de interesses nacionais ou regionais na regulação das relações de trabalho. A busca por um federalismo cooperativo e funcional não pode ser confundida com o risco de desordem institucional que, ao fim e ao cabo, prejudica tanto trabalhadores quanto empregadores.
O momento é oportuno para que a comunidade jurídica, especialmente constitucionalistas e trabalhistas, participe ativamente deste debate, assegurando que eventuais mudanças legislativas respeitem a estrutura constitucional e preservem a segurança das relações de trabalho no país.