Não há democracia garantida, ela não é um ponto de chegada, nem um dado natural de sociedades civilizadas. Democracias se constroem, amadurecem e, sobretudo, se defendem, todos os dias. A duras penas, o Brasil aprendeu essa lição ao longo de sua história republicana, marcada por interrupções autoritárias, golpes e repressões. E, embora estejamos vivendo o mais longo período de estabilidade institucional desde 1889, essa conquista ainda é frágil, especialmente diante do esquecimento que se alastra.
Hoje, uma nova geração chega à vida pública sem referências concretas sobre o que foi o regime militar. Não sabe o que significava viver sob censura, sem eleições livres, com prisões arbitrárias, perseguição a opositores e corpos desaparecidos. Não conhece o peso de viver em silêncio. O risco de flertar com a ruptura democrática sem compreender plenamente o que está em jogo é real.
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Há um romantismo perigoso em torno da ideia de força, de ordem imposta, de soluções fáceis para problemas complexos. É nesse ponto que a democracia começa a ser desidratada, não com tanques, mas com narrativas.
A promulgação da Constituição de 1988 representou a ruptura definitiva com os escombros da ditadura. Ela consolidou os fundamentos da democracia representativa e inaugurou um novo ciclo institucional, que agora precisa ser protegido com ainda mais vigor.
Foi esse pacto social, construído a partir da dignidade da pessoa humana e da separação dos poderes, que assegurou ao país estabilidade política, alternância de poder e espaço para o fortalecimento da cidadania. Não por acaso, é esse pacto que vem sendo atacado por aqueles que não aceitam os limites da democracia.
Lembro-me com clareza de um diálogo que tive com o presidente Fernando Henrique Cardoso, nos anos em que trabalhei com ele na Casa Civil da Presidência da República, entre 1995 e 1998, como assessor parlamentar. Estávamos no Palácio do Planalto, discutindo a tramitação de reformas estruturantes na área econômica.
FHC, com sua serenidade e visão de estadista, me disse: “Floriano, reformas duradouras só se constroem com republicanismo, relação firme, altiva, mas respeitosa com o Congresso. O Executivo não impõe, negocia com base em princípios e responsabilidade”.
Aquela frase me marcou profundamente. Ela traduz o compromisso de uma liderança com as regras democráticas, mesmo nos momentos mais desafiadores. Foi esse espírito que permitiu avanços históricos como o Plano Real, a reforma do Estado e o equilíbrio fiscal, sempre dentro do marco institucional.
Ao mesmo tempo, convivemos com a banalização da mentira, o descrédito das instituições e o incentivo ao desrespeito às regras do jogo. Quando setores da sociedade passam a tratar o Judiciário como inimigo, o Parlamento como inútil e o Executivo como espaço pessoal de poder, o que está em risco não é apenas a governabilidade, mas a própria democracia constitucional. Não há liberdade possível sem instituições fortes, independentes e respeitadas.
É nesse cenário que o trabalho de quem atua na articulação entre Estado, sociedade e política torna-se ainda mais relevante. Falo aqui dos profissionais de relações governamentais, que operam justamente nos bastidores da democracia, fortalecendo pontes, esclarecendo posições, evitando distorções e promovendo o diálogo entre os diversos atores institucionais.
Essa atividade, muitas vezes invisível ao público, é um dos pilares do bom funcionamento democrático. É a arte de ouvir e fazer-se ouvir, respeitando as regras do jogo, contribuindo para o equilíbrio de forças e a formação de consensos possíveis. Em tempos de polarização e descrença nas instituições, esses profissionais se tornam ainda mais essenciais. Sua atuação técnica, ética e estratégica contribui para mediar conflitos, resgatar o bom senso e preservar o espaço institucional como lugar legítimo de negociação.
Quando falamos em preservar a democracia, não estamos apenas nos referindo a eleições limpas ou à liberdade de imprensa. Estamos tratando de um ecossistema inteiro que depende da confiança mútua entre os Poderes, da transparência nas decisões públicas, da previsibilidade jurídica e do respeito à diversidade de ideias. Tudo isso passa pelas relações institucionais bem construídas e por um ambiente de diálogo contínuo e qualificado.
Os episódios que marcaram a cena política brasileira nos últimos anos, com desinformação deliberada, tentativas de ruptura institucional e violência política, deixaram claro que a democracia brasileira ainda está em processo de consolidação. A resposta das instituições foi firme e dentro da legalidade, mas o esforço não pode ser episódico. Democracia não se defende só nas crises, ela exige zelo permanente.
A defesa da institucionalidade deve ser uma ação cotidiana. Não se trata de idolatrar estruturas ou engessar processos. Ao contrário, trata-se de garantir que as instituições continuem capazes de responder aos anseios sociais de forma legítima, justa e transparente. A crítica é fundamental, mas a crítica que constrói, e não aquela que busca destruir tudo para nada colocar no lugar.
Não podemos aceitar que práticas autoritárias sejam normalizadas. Não podemos naturalizar ameaças a ministros da Suprema Corte, nem tratar tentativas de golpe como atos isolados ou impensados. Toda tentativa de ruptura é precedida de pequenas concessões ao autoritarismo, e essas concessões começam quando nos calamos diante da mentira, quando relativizamos a violência política, quando aceitamos discursos que excluem e dividem.
É preciso, portanto, reforçar a ideia de que democracia é responsabilidade coletiva. Não é tarefa apenas dos juízes, nem dos parlamentares, nem dos jornalistas. É dever de todos nós, cidadãos, servidores públicos, ativistas, educadores, empresários, profissionais de relações governamentais, manter viva a cultura democrática, rechaçar discursos de ódio e exigir coerência institucional.
E essa tarefa exige memória, porque uma sociedade que esquece o que custou chegar até aqui corre o risco de jogar tudo fora na ilusão de um atalho. A democracia é imperfeita, mas é o único caminho legítimo para construir uma sociedade plural, justa e com liberdade. Abandoná-la, mesmo que aos poucos, é abrir mão do futuro.
Como alguém que viu de perto o Brasil superar sombras e construir instituições sólidas, sigo convicto de que não há espaço para neutralidade diante das ameaças à democracia. É hora de tomar posição, reafirmar princípios e lembrar que a liberdade exige coragem, todos os dias.