Interpretar os artigos 359-M e 359-L do Código Penal não é tarefa simples. Embora o Supremo Tribunal Federal já tenha aplicado tais tipos penais em condenações relativas ao 8 de Janeiro, ainda há dúvidas que merecem esclarecimento pela corte.
Mesmo que eventualmente não tenhamos, no futuro, novos fatos enquadráveis em tais crimes, é fundamental compreendermos o seu alcance, inclusive para avaliarmos se a tutela penal conferida às instituições democráticas captura adequadamente as formas contemporâneas de ascensão de regimes autoritários.
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Especialmente desafiadora é a análise das elementares típicas de cada crime, bem como de algumas questões de tipicidade subjetiva. Para tanto, a seguinte tabela é útil:
Crime | Art. 359-M, CP | Art. 359-L, CP |
Verbo | Tentar depor | Tentar abolir |
Objeto material | Governo legitimamente constituído | Estado democrático de Direito |
Meio/modo vinculado | por meio de violência e grave ameaça | com emprego de violência e grave ameaça |
Resultado material intermediário | – | impedindo ou restringindo o exercício dos Poderes constitucionais |
Bem jurídico | Instituições democráticas/Poder Executivo federal | Instituições democráticas/Poderes constitucionais |
Sanção | 4 a 12 anos | 4 a 8 anos |
Cumulação exigida | “mais a pena correspondente à violência” | “mais a pena correspondente à violência” |
Começarei o exame comparativo de tais tipos penais pela conduta proibida. Veja-se que há, em ambos, uma opção pela criminalização diretamente na forma tentada, técnica que algumas jurisdições nomeiam delitos de atentado ou de empreendimento.
Na prática, torna-se desnecessária a conjugação do tipo penal da parte especial com o art. 14, inc. II, do Código Penal – que nada mais é do que uma cláusula geral de extensão da tipicidade. A definição da fronteira entre atos preparatórios e atos executórios – ou entre irrelevância e relevância penal – torna-se ainda mais importante em crimes desta natureza. Voltarei ao ponto adiante.
Seguindo a tabela, passa-se ao objeto material de cada crime. No delito de tentativa de golpe de Estado, a ação incide sobre o “governo legitimamente constituído”, a indicar que a tutela miraria o Poder Executivo federal. Quanto a tal elementar, pergunta-se se já há um governo legitimamente constituído após o resultado das eleições, após a diplomação (quando já se instaurou um governo de transição, com regras legais próprias) ou somente após a posse.
Esse esclarecimento será essencial por ocasião do julgamento do núcleo do ex-presidente Jair Bolsonaro e demais núcleos, uma vez que a narrativa das denúncias aponta atos executórios ao longo de anos, que extrapolariam tais marcos temporais.
Já o objeto material do crime de abolição violenta é o próprio Estado democrático de Direito, noção mais ampla e abstrata do que a elementar anteriormente referida, a qual parece estar abarcada por esta (com reflexos no âmbito do concurso de crimes e ou conflito aparente, indicando potencial relação de especialidade entre os delitos[1]).
Veja-se que o verbo abolir coincide com o do art. 60, § 4º, da Constituição Federal, que prevê as cláusulas pétreas eleitas pelo constituinte originário. Talvez aqui encontremos uma boa forma de densificar a elementar Estado democrático de Direito – cuja síntese poderia estar representada por aquilo que nem mesmo o constituinte derivado pode desfazer.
Vê-se também que o legislador elegeu uma forma vinculada de cometimento de tais crimes de atentado – há de se verificar a presença de violência ou de grave ameaça. Aqui inúmeras questões interpretativas demandam elucidação.
A primeira: para que haja início da execução e, logo, punibilidade, a violência e/ou grave ameaça já deverão estar em curso? Ou poderiam simplesmente fazer parte de um plano que, embora já iniciado, ainda não estava nesse estágio?
A segunda: qual o objeto da violência? Caberia neste ponto a intepretação clássica do Código Penal, que, quando recorre a tais termos, refere-se a pessoa(s) concreta(s) e determinada(s)? Ou a violência poderia incidir sobre bens móveis e imóveis? Mais: poderia ser uma violência de outra ordem, como, por exemplo, discursiva – baseada em desinformação promovida por milícias digitais?
Ainda nesse ponto, não parece possível desvincular essa interpretação do fato de que, no preceito secundário, há a indicação de cumulação obrigatória das penas desses crimes com “a pena correspondente à violência”.
Esse detalhe parece reforçar a ideia mais tradicional de violência à pessoa. Na interpretação da elementar “grave ameaça” sofremos o mesmo dilema. Sem dúvida, uma interpretação restritiva de tais elementares – que historicamente sempre foi a mais indicada à luz da regra da legalidade penal – minguará a superfície de punibilidade, obrigando-nos a refletir, como apontei acima, se nossos tipos penais hoje capturam adequadamente os riscos contemporâneos aos regimes democráticos.
Sobre a forma vinculada, vale também pontuar que a redação não é idêntica em tais crimes. Na tentativa de golpe de Estado, usa-se “por meio de violência ou grave ameaça” e na abolição violenta do Estado democrático de Direito, fala-se em “com emprego de violência ou grave ameaça”.
Chama a atenção a diferença, que prima facie não deve ser ignorada. Penso que essa disparidade pode ter relação com o fato de que o crime de abolição violenta possui, na sua estrutura típica, um resultado concreto intermediário, a saber, “impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais”. Intermediário, porque não se trata do resultado “final” pretendido – a abolição do Estado democrático de Direito –, mas de um resultado que seria um caminho lógico a tanto e cuja ocorrência é exigida pelo tipo em questão. Esse resultado intermediário, no entanto, não consta na redação típica do crime de golpe de Estado.
Assim, uma possibilidade interpretativa que justificaria a redação diferente (“por meio de” versus “com emprego de”) quanto ao modo vinculado da conduta seria pensar na relação dessa elementar com o resultado intermediário expressamente exigido no crime de abolição violenta do Estado democrático de Direito.
Pergunto: a restrição ou o impedimento do exercício dos poderes constitucionais deveria decorrer do emprego de violência ou grave ameaça ou poderia ser levado a cabo por meio de medidas puramente jurídicas, como decretos presidenciais etc., com recurso à violência em momento posterior à obtenção desse resultado intermediário?
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Na prática, a questão é: o emprego da violência ou da grave ameaça é um meio vinculado para gerar esse resultado intermediário exigido no tipo (com reflexos no exame de imputação objetiva), ou um meio vinculado apenas para tentar perseguir o resultado final – a abolição do Estado Democrático de Direito propriamente dita? São questões que precisam ser enfrentadas.
Haveria mais a indagar, mas essas me parecem as questões mais palpitantes. Torço para que o Supremo Tribunal Federal continue sua tarefa de densificar essas elementares nos julgamentos que se avizinham, sem cujos esclarecimentos não será possível promover um exame consistente acerca da consumação de tais crimes à luz dos fatos concretos. Sem dúvida, o rigor conceitual e dogmático impõe elevado e trabalhoso ônus argumentativo, mas, justamente por isso, é fonte máxima de autoridade e de legitimidade das decisões judiciais.
[1] Sobre o concurso material ou conflito aparente entre os crimes dos artigos 359-L e 359-M, Código Penal, ver nossos textos: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-problema-do-concurso-de-crimes-na-denuncia-contra-bolsonaro-e-outros e https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-concurso-de-crimes-na-denuncia-contra-bolsonaro-parte-2