Em julho de 2025, a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Lei nº 13.146/2015), conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência, completou uma década de vigência. Inspirado na Convenção Internacional sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da Organização das Nações Unidas (ONU), o Estatuto representa um marco na consolidação dos direitos das pessoas com deficiência no Brasil. A norma impõe ao Estado, à sociedade e às instituições – públicas e privadas – o dever de assegurar condições equitativas de acesso à educação, saúde, trabalho, cultura, lazer e justiça, reconhecendo que a deficiência não está apenas na limitação funcional, mas também nas barreiras que impedem a efetiva inclusão.
Ao completar dez anos, o Estatuto da Pessoa com Deficiência segue como referência para decisões judiciais e projetos de lei que reafirmam o direito à adaptação razoável no ambiente de trabalho e à não discriminação.
A Justiça do Trabalho e o Protocolo para Atuação e Julgamento com perspectiva antidiscriminatória, interseccional e inclusiva
O Protocolo para Atuação e Julgamento na Justiça do Trabalho é uma iniciativa recente, lançada em agosto de 2024, que busca orientar magistrados e demais operadores do direito para uma atuação mais sensível, inclusiva e antidiscriminatória no âmbito da Justiça do Trabalho brasileira. O documento foi desenvolvido pelo Tribunal Superior do Trabalho (TST), pelo Conselho Superior de Justiça do Trabalho (CSJT) e pela Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados do Trabalho (ENAMAT), em resposta às determinações da Corte Interamericana de Direitos Humanos (Corte IDH) e às demandas sociais por maior equidade e respeito à diversidade.
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O Protocolo tem como objetivo principal orientar a Justiça do Trabalho para que suas decisões e procedimentos considerem as desigualdades históricas e sociais presentes nas relações de trabalho. Ele propõe uma metodologia de julgamento que leva em conta, de forma interseccional, marcadores de identidade como gênero, raça, etnia, orientação sexual, classe social, deficiência e idade. A ideia é garantir que o acesso à justiça seja efetivo para todos, especialmente para aqueles que tradicionalmente enfrentam barreiras e discriminações[1].
No que se refere à pessoa com deficiência, o documento destaca a importância de se observar o conceito de discriminação previsto no Estatuto da Pessoa com Deficiência, especialmente para a correta aplicação do ônus da prova em ações judiciais. Segundo o Protocolo, considerando que a discriminação por deficiência inclui qualquer forma de distinção, restrição ou exclusão (seja por ação ou omissão), empresas obrigadas por lei a contratar pessoas com deficiência devem comprovar que oferecem não apenas vagas acessíveis, mas oportunidades reais de desenvolvimento profissional.
Entre os exemplos de práticas discriminatórias listadas no Protocolo estão:
- Ausência de condições para promoção na carreira;
- Dispensa motivada pela condição de deficiência;
- Falta de adaptações razoáveis no ambiente de trabalho; e
- Ausência de medidas de apoio ao empregado que cuida de pessoa com deficiência.
Decisões da Justiça do Trabalho reforçam dever de adaptação das empresas
A Justiça do Trabalho tem reforçado que, além de cumprir a cota legal, as empresas devem realizar ajustes físicos no espaço e mudanças procedimentais para assegurar a plena participação da pessoa com deficiência no trabalho.
Em decisão recente, o Tribunal Regional do Trabalho (TRT) da 2ª Região (SP)[2] condenou uma empresa ao pagamento de indenização por dano moral e converteu o pedido de demissão de um empregado com deficiência intelectual em rescisão indireta. O Tribunal entendeu que: (i) a empresa não adotou medidas para remover barreiras no local de trabalho; e (ii) o pedido de demissão redigido sem assistência indicaria que o empregado pode não ter alcançado intelectualmente a diferença entre pedido de demissão e dispensa pela empresa.
Em outra decisão paradigmática, o TRT da 9ª Região (PR)[3] reconheceu o direito de um empregado com Transtorno do Espectro Autista (TEA) de exercer sua função por meio do teletrabalho. A desembargadora relatora destacou que a ausência de uma norma específica não deve impedir que o trabalhador desempenhe suas atividades de forma adaptada à sua condição.
O Tribunal Superior do Trabalho (TST) também tem reiterado esse entendimento. Em outro caso[4], envolvendo um empregado com deficiência que desenvolveu transtorno depressivo recorrente, o TST reconheceu a responsabilidade da empresa por não oferecer adaptações e por exigir produtividade igual à dos demais empregados. O precedente foi seguido pelo TRT da 12ª Região (SC), que determinou o pagamento de indenização por lucros cessantes enquanto durar a doença relacionada ao trabalho, além de danos morais.
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Em reforço a essa interpretação, o TST[5] anulou recentemente a dispensa de empregado com deficiência intelectual aprovado em concurso público, mas reprovado em avaliações internas durante o período de experiência. A Corte entendeu que a aplicação de critérios uniformes, sem considerar as especificidades da deficiência, configura discriminação indireta, e determinou a reintegração do empregado para um novo período de experiência.
Já o TRT da 8ª Região (PA/AP)[6] determinou a transferência de empregada concursada para outra unidade, mais próxima à sua cidade origem, a fim de possibilitar o acompanhamento terapêutico de sua filha diagnosticada com TEA.
Mais inclusão
Em dezembro de 2022, o Supremo Tribunal Federal (STF), ao julgar o Tema 1.097 da Repercussão Geral, reconheceu que servidores públicos estaduais e municipais têm direito à redução da jornada de trabalho para cuidar de filhos ou dependentes com deficiência, mesmo sem legislação local específica.
Com base nesse entendimento, o TST firmou a tese do Tema Repetitivo nº 138, estendendo o direito à jornada reduzida também aos empregados públicos que tenham filhos com TEA, sem necessidade de compensação de horas ou redução do salário.
Embora ainda não exista legislação que imponha essa obrigação ao setor privado, diversos projetos de lei estão em análise no Congresso Nacional. Um dos principais é o Projeto de Lei 2.774/2022, aprovado pela Comissão de Direitos Humanos do Senado em abril de 2025, que propõe a redução da jornada de trabalho para empregados responsáveis por pessoas com TEA ou Síndrome de Down, sem corte de salário e sem necessidade de compensar horas, mediante convenção ou acordo coletivo.
Também em análise no Senado, o Projeto de Lei 2.436/2022 propõe a criação de uma jornada especial para empregados que tenham filhos, enteados ou dependentes com deficiência, inclusive sob guarda judicial. A proposta assegura a manutenção da remuneração e exige avaliação técnica para comprovar a necessidade do regime diferenciado, sempre mediante negociação coletiva.
Na Câmara dos Deputados, o Projeto de Lei 3.290/2023 propõe que a própria pessoa com deficiência possa optar por jornada reduzida, desde que comprove a necessidade por meio de avaliação técnica. O texto já foi aprovado pela Comissão de Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência e segue para análise nas comissões de Trabalho e de Constituição e Justiça.
Já o recente Projeto de Lei 3.866/2025, apresentado perante a Câmara dos Deputados, pretende garantir o direito ao trabalho remoto a empregados com deficiência, quando compatível com a função, mediante a apresentação de laudo médico.
Razoabilidade e diálogo como caminho para a inclusão
Embora o Estatuto da Pessoa com Deficiência assegure o direito à adaptação do ambiente de trabalho, a legislação também reconhece que essas medidas não devem impor um ônus desproporcional ou indevido ao empregador. O princípio da adaptação razoável orienta que cada situação seja analisada individualmente, levando em conta a natureza da deficiência e as condições específicas do trabalhador.
Nesse contexto, o diálogo entre empresa e empregado é essencial para a construção de soluções viáveis. A escuta ativa e da construção conjunta de alternativas permite identificam adaptações viáveis, capazes de promover inclusão sem comprometer a sustentabilidade do negócio.
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A implementação de políticas internas de inclusão, aliada à realização de treinamentos periódicos, campanhas de conscientização, formação de grupos de afinidade e criação de canais de escuta qualificada, são estratégias eficazes para fomentar o respeito à diversidade e prevenir condutas discriminatórias. Além de seus efeitos práticos, essas iniciativas funcionam como elementos de prova da diligência empresarial em eventuais disputas administrativas ou judiciais.
É possível, ainda, adotar medidas específicas, ajustadas às necessidades reais, tais como:
- Deficiência física ou mobilidade reduzida: instalação de rampas e corrimões, adaptação de mobiliário, realocação de setores para facilitar o acesso, reserva de vagas em estacionamento e disponibilização de equipamentos ergonômicos;
- Deficiência auditiva: disponibilização de softwares de transcrição automática, uso de legendas em vídeos institucionais, sinalizações visuais e contratação de intérpretes de libras;
- Deficiência visual: disponibilização de leitores de tela, documentos acessíveis em formatos compatíveis, sinalização tátil e capacitação da equipe para suporte adequado;
- Deficiência intelectual ou psicossocial: flexibilização de jornada, acompanhamento por profissionais especializados, revisão de critérios de avaliação e oferta de ambientes de trabalho com menor estímulo sensorial.
Com ajustes simples e alinhados à realidade de cada organização, é possível implementar práticas de inclusão que atendam às exigências legais e contribuam para a mitigação de riscos trabalhistas. Ainda que nem todas as medidas possam ser implementadas de forma imediata ou integral, o compromisso com a identificação de barreiras e a adoção progressiva de soluções concretas demonstra diligência empresarial e pode ser decisivo na avaliação de autoridades administrativas e judiciais.
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[1] Protocolos para atuação e julgamento na Justiça do Trabalho. Disponível em: https://www.csjt.jus.br/documents/955023/0/Protocolos+de+Atua%C3%A7%C3%A3o+e+Julgamento+da+Justi%C3%A7a+do+Trabalho+%281%29.pdf/3a7256a6-2c97-22d7-a74e-bf607baf22ce?t=1724100057072. Acesso em agosto/2025.
[2] Processo nº 1001899-54.2023.5.02.0058.
[3] Processo nº 0000698-21.2022.5.09.0014.
[4] Processo nº 0001826-96.2017.5.12.0037.
[5] Processo nº 10115-05.2020.5.03.0153.
[6] Processo sob segredo de justiça – https://www.trt8.jus.br/noticias/2025/justica-do-trabalho-determina-transferencia-de-bancaria-para-garantir-tratamento-de

