Um tribunal em que ministros têm, sozinhos, prerrogativas para produzir efeitos na política sem passar pelo controle de qualquer um dos colegiados do STF. Uma instituição colegiada na qual cada um de seus integrantes pode empregar individualmente o poder do tribunal – na qual a vontade de apenas um já é suficiente para moldar o mundo fora do Supremo.
Foi esse o cenário que, em 2018, um dos autores deste texto e o cientista político Leandro Molhano Ribeiro mapearam e caracterizaram como “ministrocracia”. Em 2022, as mudanças regimentais promovidas ao fim da presidência da ministra Rosa Weber representaram um claro avanço quanto a essas disfunções. Contudo, as últimas semanas têm mostrado que, apesar das novas regras, a “ministrocracia” ainda vai bem, obrigado.
Conheça o JOTA PRO Poder, plataforma de monitoramento que oferece transparência e previsibilidade para empresas
A reforma de 2022 incluiu um útil mecanismo para forçar controle colegiado sobre decisões monocráticas. No novo regimento, decisões cautelares monocráticas em casos de urgência devem ser imediatamente submetidas ao plenário ou à respectiva Turma, “preferencialmente em ambiente virtual”. Além disso, a medida cautelar “será automaticamente inserida na pauta da sessão virtual subsequente” para análise do respectivo colegiado (artigo 21, § 5º do Regimento Interno do STF). No caso específico de medidas que resultem em prisão, essa análise deve ocorrer em ambiente presencial (art. 21, § 8º).
Essas regras deixaram de fora decisões monocráticas de altíssimo impacto que não são cautelares – como, por exemplo, as diversas anulações, pelo ministro Dias Toffoli, de medidas judiciais tomadas no arco da Operação Lava Jato, que não foram submetidas a colegiado, ou as várias decisões que designaram audiências de conciliação para lidar com questões constitucionais.
Além disso, os ministros continuam com o mesmo poder de se mover primeiro e, decidindo sozinhos, levar para apreciação dos colegas situações fáticas já alteradas e às vezes consolidadas, podendo assim “emparedar” o plenário com decisões de reversão muito custosa.
Esse “emparedamento” do plenário é especialmente intenso quando os ministros deferem cautelares de ofício. Afinal, na ausência de um pedido cautelar explícito formulado pelas partes, os ministros nem sequer teriam “o quê” levar ao colegiado.
Decidir de ofício deveria ser algo excepcional, adequado apenas em situações raras e muito bem limitadas. Mas, ao mesmo tempo em que temos visto mais decisões cautelares de ofício no STF, é difícil imaginar um ministro levando (de ofício) ao colegiado uma proposta de cautelar a ser tomada de ofício. Nesse cenário, decidir sozinho parece se tornar menos custoso do que decidir a partir de um pedido formal que, em tese, poderia ser previamente submetido ao plenário.
Em que pesem os limites da regra, porém, ela foi uma inovação relevante e oportuna, com um mecanismo engenhoso: como o regimento determina a inserção em pauta, o controle do colegiado não depende mais da vontade do relator de liberar ou não sua decisão para referendo. A regra não elimina o poder individual de decidir sozinho, mas mitiga seus efeitos. A inclusão automática em pauta ataca a perniciosa soma de controle individual de agenda e poder monocrático de decisão que permitia a ministros não apenas decidirem sozinhos, mas se e quando sua decisão monocrática seria analisada pelo colegiado.
Contudo, a inovação de 2022 tem sido ignorada em alguns casos de alta magnitude. É o que nos mostram duas decisões cautelares recentes – a de Alexandre de Moraes impondo prisão domiciliar a Jair Bolsonaro e a de Flávio Dino determinando (entre outras medidas) que empresas só podem seguir, no Brasil, determinações de sistemas jurídicos estrangeiros com expressa autorização do STF.
Até o momento em que escrevemos, nenhuma das duas decisões foi liberada para julgamento. Pela regra de 2022, isso deveria ter acontecido automaticamente. A de Dino deveria ser liberada no mínimo para o plenário virtual. A de Moraes, por envolver prisão domiciliar, se encaixaria na exigência de referendo em ambiente presencial, nos termos indicados acima.
Nosso ponto aqui não é sobre o mérito das cautelares, nem estamos assumindo que, se submetidas ao colegiado, seriam reformadas. O problema é que, corretas ou não, com maioria do tribunal ou não, o regimento exige que essas decisões sejam submetidas ao colegiado.
Informações direto ao ponto sobre o que realmente importa: assine gratuitamente a JOTA Principal, a nova newsletter do JOTA
Em nenhum dos dois casos, essa não submissão ao colegiado foi fundamentada. Embora possamos imaginar fundamentações possíveis, elas seriam problemáticas. Por exemplo, os ministros poderiam argumentar que esses casos expressam exceções – tipos de decisões liminares que não se submeteriam ao colegiado: i) a decisão liminar que determina a prisão por violação das medidas cautelares penais, no caso decidido por Moraes; ii) a decisão liminar que além de decidir determina a realização de diligências, na decisão de Dino.
Mas seriam exceções criadas individualmente e para situações que seriam evidentemente abarcadas pelo detalhado texto das regras em jogo – regras que, vale dizer, foram criadas há poucos anos, já no contexto de ameaças à democracia, e após anos de debate dentro e fora do tribunal.
Os ministros do STF parecem resistir em obedecer ao seu próprio regimento. No caso, parecem não aceitar sequer as regras que acabaram de criar. Resta saber como o tribunal vai lidar com esse problema, que, no fundo, é maior do que a “ministrocracia”: o de um Supremo em que ministros escolhem se e quando vão obedecer aos procedimentos criados para regular o seu próprio comportamento como parte de um colegiado.

