Quando iniciei a advocacia, em 1987, o universo das interações com clientes e dos processos judiciais era integralmente físico. Nas reuniões presenciais, passavam-se os documentos de mão a mão – e as assinaturas das procurações era a caneta, no próprio escritório. As informações eram verbalizadas e anotadas ao vivo pelos advogados e advogadas.
As petições, na maioria das vezes datilografadas (eu cheguei a fazer algumas manuscritas!), eram copiadas em papel carbono e arquivadas em pastas que ficavam em grandes arquivos metálicos. Levadas aos cartórios, recebiam carimbos de protocolo. Depois, eram furadas do lado esquerdo e, literalmente, costuradas nos autos dos processos, que repousavam solenemente em prateleiras pesadas (houve prédios cujas estruturas, com o passar do tempo, não suportavam tantas toneladas). Era o império dos clips, secundados pelos grampeadores.
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Então, cuidar de dados significava, essencialmente, zelar por papéis: proteger sua integridade física contra extravios, deteriorações e olhares indiscretos. Afinal, muitas vezes o documento era único e sigiloso: sem ele, não haveria direito algum. A responsabilidade ética, já naquele tempo, era a de preservar ativamente o sigilo das informações confiadas pelo cliente – e respectiva base documental.
Esse era o dever essencial, mas a sua intransponível materialidade limitava os meios de proteção a cuidados físicos e pessoais. Havia documentos que, de tão importantes, o advogado recusava-se a receber do cliente – ou os guardava no cofre do escritório e, alguns, até os levavam para a sua própria casa.
Nas últimas duas décadas, essa realidade foi progressivamente transformada para o mundo digital, em aceleração contínua. Lembro-me bem dos primeiros passos, quando se fez necessário adquirir scanners de qualidade: imprimíamos a petições, as assinávamos e digitalizávamos. Às vezes, de tão pesados os arquivos, precisávamos entregar o CD com os documentos no cartório. Ou mesmo, nas audiências e despachos, havia juízes que pediam a entrega das vias impressas, eis que ainda não haviam se acostumado com as peças digitais.
O processo eletrônico começou de forma incipiente no Brasil da década de 1990, mas só se consolidou e ganhou força a partir dos anos 2000, sobretudo depois da Lei 11.419/2002, que regulamentou a informatização do processo judicial. Essa digitalização da atividade advocatícia, acompanhada da comunicação eletrônica com clientes, do armazenamento de documentos em nuvem e da utilização de plataformas digitais de gestão modificaram, de forma silenciosa e irreversível, o nosso cotidiano profissional. O que traz consequências decisivas para a gestão dos dados dos clientes pelos advogados.
O manuseio de informações passou a exigir competências antes impensáveis: proteger não mais apenas papéis, mas fluxos de dados; transformar espaços físicos em ambientes virtuais; garantir a fidedignidade de peças que residem em país estrangeiro. Manter a reserva não só nos jantares com os amigos, mas, especialmente, nas redes sociais. Se antes bastava trancar um armário, hoje é necessário proteger servidores, adotar políticas de segurança e vigiar vulnerabilidades invisíveis. Isso só fez aumentar a nossa responsabilidade.
Ou, melhor: fato é que esse fenômeno da mudança de suporte documental em nada alterou a natureza do dever de confidencialidade – apenas a expandiu em suas exigências. Por um lado, permanece íntegro o dever de sigilo estabelecido pelo Código de Ética e Disciplina da OAB: o advogado é, acima de tudo, o depositário da confiança do cliente.
Esse dever, que antes se materializava em papéis; agora recai também sobre bancos de dados, e-mails, conversas de WhatsApp, sistemas e backups. Precisamos ter a consciência de que um e-mail ou uma mensagem nem sempre atingem um só destinatário, como as cartas outrora o faziam, mas podem chegar a dezenas ou milhares de leitores. O que é muito sério, a demandar cuidados redobrados.
Por outro lado, a entrada em vigor da Lei Geral de Proteção de Dados (Lei 13.709/2018) acrescentou uma dimensão adicional em nossa responsabilidade profissional, acentuada pelo reconhecimento, pela EC 115/2022, de que a proteção dos dados pessoais, inclusive nos meios digitais, é um direito fundamental (Constituição, art. 5º, inc. LXXIX).
O advogado, enquanto controlador ou operador de dados pessoais no exercício de sua atividade, submete-se a obrigações específicas: garantir a segurança das informações, assegurar sua utilização para finalidades legítimas, respeitar os princípios da necessidade e da minimização de dados e, em certos casos, comunicar prontamente incidentes de segurança às autoridades e aos titulares.
O advogado contemporâneo carrega, portanto, uma responsabilidade especial, eis que os dados a si confiados trazem consigo duas camadas de proteção: a ético-estatutária e a legal-regulatória. A violação do dever de sigilo não apenas pode ensejar sanções disciplinares, como também gerar multas administrativas, responsabilidades cíveis e danos reputacionais, sob a ótica da proteção de dados pessoais.
A complexidade dos riscos se multiplicou: a fragilidade de uma senha, a omissão na atualização de um sistema ou a ausência de protocolos de proteção podem hoje ser tão graves quanto, no passado, deixar esquecido um processo confidencial em uma sala pública.
Apesar da transformação dos meios, a essência da advocacia persiste a mesma. Desde o papel até a nuvem, o advogado continua a ser o guardião da confiança que o cliente nele deposita. A responsabilidade é agora ainda mais abrangente e técnica, exigindo não apenas a sua discrição pessoal, mas também capacidade de gestão de riscos digitais.
A boa advocacia, ontem como hoje, continua a se sustentar sobre um princípio ético simples e inalterável: quem confia seus dados e documentos a um advogado deposita nele a sua vida jurídica – e essa confiança precisa ser preservada ativamente.