Quem lidera as discussões sobre regulação digital no Brasil? Legisladores, Judiciário, órgãos governamentais e empresas aparecem como protagonistas em diversos debates sobre regulação de plataformas no país. Contudo, usuários e usuárias de internet, que seriam os principais impactados, raramente são incluídos, de forma significativa, em processos de construção regulatórios.
Ainda que haja espaços formais de participação, essa escuta ainda ocorre de forma simbólica, filtrada por organizações e especialistas, em vez da voz direta dos cidadãos. Temas que afetam o dia a dia seguem distantes da compreensão e da participação da maioria da população.
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Enquanto o ciclo de novas regras para plataformas avança, é importante retomarmos essa discussão. Evidentemente, a conjuntura de hoje é muito diferente daquela de 2007 a 2016, quando o Brasil desenvolveu, com o Marco Civil da Internet, um dos maiores experimentos globais de legislação participativa já feitos até então.
Mas isso não impede de refletirmos: quem de fato está sendo ouvido na regulação tecnológica?
Por que é difícil ouvir as pessoas?
O Brasil já mostrou que é possível construir políticas digitais com protagonismo social: o Marco Civil da Internet (Brasil, 2014) foi um exemplo bem-sucedido de participação democrática.
Na época, o texto foi discutido em consultas públicas digitais que receberam mais de 2.000 contribuições populares. O debate seguiu no Congresso, com audiências públicas regionais e até a abertura inédita de um canal para contribuições via Twitter (CGI.br, 2014; Lemos; Souza, 2016; Vianna, 2023).
Essa combinação de participação consolidou o Marco Civil como um dos maiores experimentos globais de legislação colaborativa sobre internet. Não à toa, foi saudado internacionalmente: a Foreign Policy classificou o processo como “um dos maiores experimentos já realizados de crowdsourcing legislativo”; Tim Berners-Lee, criador da Web, celebrou a iniciativa dizendo que o Marco Civil foi construído “pelos próprios usuários” (Foreign Policy, 2016; Web Foundation, 2014). O mais relevante: as contribuições populares influenciaram efetivamente o texto final, moldando artigos sobre privacidade, liberdade de expressão e neutralidade da rede.
A conjuntura de hoje é diferente. Naquele período, a internet comercial tinha chegado há pouco mais de dez anos no Brasil, o ambiente digital era menos onipresente e atravessado por disputas políticas, o debate era menos polarizado e as plataformas não tinham o peso econômico e político que acumularam depois.
Hoje, novos obstáculos se impõem: o risco de manipulação por bots em consultas públicas online, a captura de espaços de participação por grupos organizados, os custos de manter painéis amplos e a dificuldade de transformar consultas em processos contínuos de deliberação. Ao mesmo tempo, faltou imaginação política para reinventar formas de escuta à altura das novas tecnologias — em vez de buscar alternativas, muitas vezes se abandonou totalmente a ideia de processos abertos com participação social.
Isso não significa que seja impossível repetir o espírito do Marco Civil. O desafio atual é desenhar novas estruturas de participação que considerem as diferentes formas de apropriação tecnológica da população brasileira e devolvam protagonismo aos cidadãos na construção das políticas digitais.
Na prática, quem participa?
A OCDE (2021) destaca que consultas à sociedade aumentam a confiança e a conformidade com as regras, além de melhorar a compreensão social sobre o porquê de regular, sugerindo que governos obtenham uma compreensão mais completa dos impactos potenciais em todos os segmentos da população.
Hoje, há mais canais formais de escuta — como audiências no Congresso, o portal e-Cidadania do Senado Federal e plataformas de consulta do Executivo (Participa+Brasil), mas a participação efetiva dos usuários ainda é limitada. Em geral, quem mais contribui são atores organizados (empresas, especialistas, ONGs), enquanto o cidadão comum enfrenta barreiras como linguagem técnica e ausência de retorno sobre como suas contribuições foram consideradas.
Há também lacunas estruturais: grupos mais vulneráveis, como adolescentes, idosos ou comunidades com baixa conectividade são menos ouvidos diretamente. Isso gera risco de que políticas sejam desenhadas sobre eles, sem ouvir suas perspectivas.
E aqui o desafio não é apenas institucional, mas também metodológico. Vai além apenas abrir canais, mas também formar cidadãos preparados para ocupá-los. Como colocam Baccega (2009) e Martín-Barbero (1997), usuários não são receptores passivos: interpretam, ressignificam e adaptam as tecnologias aos seus contextos sociais. Para que essa pluralidade apareça nas políticas digitais, é preciso investir em alfabetização midiática e literacia digital (Spinelli, 2021), capazes de desenvolver habilidades técnicas, reflexivas e políticas.
Em outras palavras: também é preciso incluir os cidadãos para que possam participar do debate político de maneira informada e consciente. Consultas mais acessíveis, painéis híbridos e metodologias qualitativas — como oficinas, pesquisas de recepção, programas de letramento — podem ajudar a incluir perspectivas que hoje ficam invisíveis.
É nesse sentido que a “imaginação política” precisa avançar: não é sobre repetir modelos do passado, mas experimentar novos métodos de escuta que reflitam a pluralidade dos cidadãos brasileiros, incorporando a experiência real de quem vive a internet no dia a dia.
Para onde avançar
Regular o ambiente digital não é apenas “controlar tecnologia”, mas regular relações sociais mediadas pela tecnologia. Para que as regras sejam legítimas e aplicáveis, a experiência dos usuários precisa estar no centro, levando em conta as particularidades sociais e culturais brasileiras.
Para mudar esse quadro, é preciso adotar boas práticas já conhecidas: consultas públicas em linguagem acessível, com ampla divulgação e retorno sobre como as contribuições foram usadas; fóruns deliberativos com cidadãos sobre temas digitais; e espaços de participação direcionados a grupos específicos e vulneráveis.
Não se trata de substituir a análise técnica. Trata-se, sim, de qualificar a regulação com dados primários sobre experiência real de uso, e assim permitir uma legislação realmente participativa.
BACCEGA, Maria Aparecida. Inter-relações comunicação e consumo na trama cultural: o papel do sujeito ativo. In: Caleidoscópio Midiático: o consumo pelo prisma da comunicação. São Paulo: ESPM, 2009
BRASIL. Lei nº 12.965, de 23 de abril de 2014. Estabelece princípios, garantias, direitos e deveres para o uso da Internet no Brasil (Marco Civil da Internet). Brasília, 2014. Disponível em: https://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2014/lei/l12965.htm.
COMITÊ GESTOR DA INTERNET NO BRASIL (CGI.br). O CGI.br e o Marco Civil da Internet: defesa da privacidade de todos que utilizam a Internet; neutralidade de rede; inimputabilidade da rede. Brasília: CGI.br, 2014. Disponível em: https://www.cgi.br/media/docs/publicacoes/4/CGI-e-o-Marco-Civil.pdf.
MARTÍN-BARBERO, Jesús. Dos meios às mediações: comunicação, cultura e hegemonia. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 1997.
OCDE. OECD Regulatory Policy: Outlook 2021. OECD Publishing, Paris. Disponível em: https://www.oecd.org/content/dam/oecd/en/publications/reports/2021/10/oecd-regulatory-policy-outlook-2021_c5274577/38b0fdb1-en.pdf.
O’MALEY, Daniel. How Brazil crowdsourced a landmark law. Foreign Policy, 19 jan. 2016. Disponível em: https://foreignpolicy.com/2016/01/19/how-brazil-crowdsourced-a-landmark-law.
SOUZA, Carlos; LEMOS, Ronaldo. Marco Civil da Internet: construção e aplicação. Juiz de Fora: Editar Editora Associada Ltda, 2016. ISBN 978-85-7851-156-2. Disponível em: https://itsrio.org/wp-content/uploads/2017/02/marco_civil_construcao_aplicacao.pdf.
SPINELLI, Egle Müller. Comunicação, Consumo e Educação: alfabetização midiática para cidadania. Intercom: Revista Brasileira de Ciências da Comunicação, v. 44, n. 3, p. 127–143, 2021.
VIANNA, Rodolfo. Saiba tudo sobre o Marco Civil da Internet. Desinformante, 10 mar. 2023. Disponível em: https://desinformante.com.br/marco-civil-internet/.
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