Enchentes no Texas levantam dúvidas sobre atuação das autoridades nos EUA 

Especialistas avaliam preparação do Texas para enfrentar desastres naturais e apontam falhas  Internacional, Enchentes, Estados Unidos, Inundações, Texas CNN Brasil

Enquanto o Texas se recupera das enchentes que mataram mais de 100 pessoas no final de semana, surgem dúvidas sobre se as autoridades poderiam ter feito mais para evitar a tragédia – tanto nas décadas que antecederam esse desastre quanto nos momentos após o rio Guadalupe começar a transbordar.

Nos últimos anos, diversos esforços para construir um sistema de alerta de enchentes mais robusto fracassaram ou foram abandonados no condado de Kerr — o mais atingido pelas enchentes — devido a preocupações orçamentárias.

Com isso, ele ficou sem sirenes de emergência, que poderiam ter alertado os moradores sobre a elevação do nível das águas.

Embora pelo menos um condado vizinho tenha emitido ordens de desocupação na manhã de 4 de julho, as autoridades de Kerr parecem não ter adotado essa medida.

Uma análise de comunicações, normalmente confidenciais, de um sistema de mensagens em tempo real operado pelo NWS (Serviço Nacional de Meteorologia dos EUA) mostrou que nenhum gerente de emergência do condado de Kerr estava enviando mensagens ou interagindo com a equipe do NWS na plataforma, mesmo que autoridades de outros condados estivessem.

A CNN obteve permissão para divulgar algumas das informações desta plataforma.

A falta de mensagens não significa que as autoridades de Kerr não estivessem monitorando as comunicações do NWS e tomando providências.

Entretanto, isso levanta novos questionamentos sobre as ações das autoridades locais, particularmente em um período crucial entre o primeiro alerta público do NWS, à 1h14, e um alerta mais urgente de enchente repentina, enviado várias horas depois.

Algumas autoridades defenderam a decisão de não ordenar desocupaçõe generalizadas, pontuando que estavam preocupadas com a possibilidade de carros ficarem presos nas águas que subiam rapidamente.

O Coordenador de Gestão de Emergências do condado de Kerr, W.B. “Dub” Thomas, não quis comentar quando a CNN pediu que ele explicasse as ações tomadas pelo condado nas primeiras horas da manhã de sexta-feira.

“Não tenho tempo para uma entrevista, então vou cancelar esta ligação”, comentou.

Embora o Serviço Nacional de Meteorologia dos EUA tenha emitido vários alertas na manhã de sexta, à medida que o perigo aumentava, não está claro se eles chegaram às áreas mais remotas, onde o serviço de telefonia celular pode ter sido limitado – incluindo o Camp Mystic, onde pelo menos 27 campistas e monitoras morreram.

Caroline Cutrona, monitora do Camp Mystic, disse à CNN que as monitoras não tinham permissão para usar o celular no trabalho, então ela nunca recebeu os alertas do NWS.

Cutrona estava em uma área mais alta do acampamento durante a noite e conseguiu evitar as enchentes.

Porém, algumas campistas do Mystic estavam hospedadas em áreas que haviam sido previamente identificadas como zonas de alto risco de inundação, mostram registros do governo.

Ali Mostafavi, professor de engenharia civil na Universidade Texas A&M, disse que o desastre mostrou como a preparação contra enchentes não conseguiram acompanhar o risco em uma região que ele descreveu como “uma das áreas mais mortais para inundações repentinas do país”.

Ele ponderou que os sistemas de alerta locais poderiam ser adequados para regulamentações do passado, “mas, para a nova norma, eles não são”.

O vice-governador do Texas, Dan Patrick, comentou na noite de segunda-feira (7) que a área precisa de sirenes de inundação e que o estado ajudaria a pagar por elas.

“Deveria haver sirenes aqui. Se a cidade não puder arcar com os custos, o estado intervirá e precisamos implementar esses recursos até o próximo verão”, afirmou Patrick à Fox News.

Planos fracassados ​​para sistema de alerta

Autoridades reconhecem há muito tempo o risco de inundações fatais no condado de Kerr.

Em uma reunião de 2016, o comissário do condado, Tom Moser, declarou que Kerr era “provavelmente a área de maior risco de inundações no estado” e descreveu o sistema de alerta como “bastante antiquado”.

Moser, que se aposentou da comissão em 2021, disse à CNN que seus esforços para melhorar o sistema encontraram obstáculos ao longo dos anos.

Após grandes inundações em outras partes da região de Hill Country em 2015, Moser afirmou que estudou como o condado de Comal, que está em uma região próxima, instalou sirenes, adotou planos para impedir travessias em períodos de águas baixas e fez outros preparativos para inundações.

Ele sugeriu que Kerr fizesse o mesmo, mas alguns moradores questionaram de onde viria o financiamento, enquanto outros se preocupavam com o barulho: “Algumas pessoas não gostaram da ideia de sirenes tocando e incomodando todo mundo”, lembrou Moser.

Um de seus colegas comissários, H. A. “Buster” Baldwin, expressou essas preocupações em uma reunião de 2016.

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“Só de pensar no nosso lindo condado de Kerr com essas malditas sirenes tocando no meio da noite, vou ter que começar a beber de novo para aguentar vocês”, comentou Baldwin, que morreu em 2022, de acordo com a transcrição da reunião.

Em 2017, autoridades do condado e da Autoridade do Alto Rio Guadalupe, que administra o rio, solicitaram US$ 980 mil em verbas da Agência Federal de Gestão de Emergências para construir um sistema de alerta de enchentes, mas foram negadas, segundo atas de reunião e registros públicos.

Segundo Moser, sem financiamento estadual ou federal, o sistema de alerta de enchentes “simplesmente não chegou ao topo da lista” de prioridades de financiamento do próprio condado – embora os comissários tivessem chamado atentção para “todas as pessoas que morreram em enchentes repentinas no passado”.

Novamente em 2021, atas de reunião mostram como os comissários do condado discutiram a possibilidade de alocar verbas para um sistema de alerta de enchentes que incluísse especificamente sirenes.

Um engenheiro ressaltou que um comissário do condado havia “identificado” US$ 50 mil para o sistema. Mas os planos não deram em nada.

Mais recentemente, autoridades locais consideraram solicitar verba para o sistema junto ao Fundo de Infraestrutura para Enchentes do Texas, mas se recusaram a enviar a solicitação porque a verba cobriria apenas cerca de 5% do custo de instalação, de acordo com documentos da autoridade fluvial.

Neste ano, as autoridades estavam avançando com um objetivo mais limitado: a autoridade fluvial publicou um edital para um projeto que visava desenvolver um recurso de dados “para aprimorar o alerta de enchentes para o público” no condado, de acordo com uma página arquivada em fevereiro.

Em abril, a agência fluvial aprovou uma resolução para selecionar uma empresa para o projeto, e uma autoridade afirmou em uma reunião no mês seguinte que “consolidar dados pluviométricos, de vazão e outros dados relacionados a enchentes melhoraria a divulgação de alertas de enchentes para o público”, de acordo com um artigo no Kerrville Daily Times.

Sistema de alerta poderia ter salvado vidas, diz ex-comissário

Tom Moser destacou acreditar que, se o condado tivesse implementado um sistema de alerta precoce, poderia ter salvado vidas.

“Sabe, celulares são bons, ok? Mensagens de texto são boas. Mas, ao mesmo tempo, há lugares na região montanhosa onde não se consegue um bom sinal”, ponderou.

Na cidade vizinha de Comfort, mais abaixo no rio Guadalupe, duas sirenes foram úteis para alertar os moradores a desocuparem o local, afirmou Brian Boyter, bombeiro voluntário da cidade, à CNN.

Na segunda-feira, os socorristas em Comfort ainda encontravam corpos que haviam sido levados do condado de Kerr pelo rio, mas Boyter pontuou não ter conhecimento de nenhuma morte por inundação em Comfort.

As duas áreas têm diferenças significativas na topografia e no período de inundação, o que tornou a encente em Kerr muito mais mortal. Ainda assim, o bombeiro atribuiu a falta de mortes em Comfort em parte às sirenes de alerta.

Rio Guadalupe subiu vários metros no Texas

A Autoridade do Alto Rio Guadalupe possui cinco medidores no rio no condado de Kerr e um em um afluente, o Johnson Creek, de acordo com seu site.

Esses medidores mostram que o nível do rio subiu até 9 metros em poucas horas na manhã de sexta-feira.

Porém, Philip Bedient, professor de engenharia na Universidade Rice, que pesquisa gestão de desastres e modelagem de inundações, acha que o rio pode ter subido pelo menos o dobro ou o triplo desse número dos medidores.

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“Deveria ter havido um sistema melhor”, avaliou Bedient, chamando a devastação causada pela enchente de “indesculpável”.

Ele destacou que o fato de o financiamento do sistema de alerta no condado de Kerr ter sido rejeitado foi “simplesmente horrível”.

“Não acho que eles serão rejeitados desta vez”, comentou.

Mark Rose, que trabalhou como gerente de outra autoridade fluvial do Texas, concordou que era fundamental — e valia o preço — ter uma rede maior de medidores para dar aos moradores informações em tempo real sobre o nível da água do rio.

“Gastaremos mais em recuperação do que os vários milhões que custaria para instalar um sistema de medidores”, ponderou Rose sobre o desastre do condado de Kerr.

Acampamentos infantis em zona de inundação

O risco de inundação era especialmente alto no Camp Mystic, o acampamento feminino de quase 100 anos às margens do rio Guadalupe, onde monitoras e campistas precisaram fugir para terrenos mais altos em meio à rápida elevação das águas.

Algumas das cabanas estão localizadas na “zona de inundação regular” do rio – a área que inunda primeiro e é mais perigosa – de acordo com mapas federais.

Outras construções estavam localizadas em uma área que o governo federal determinou que tem 1% de chance de inundação a cada ano.

Novas construções ou reformas significativas nessas áreas exigiriam uma revisão específica por um gestor local da planície de inundação, de acordo com documentos do condado de Kerr.

Mas imagens aéreas históricas mostram que as cabanas na área do acampamento mais afetada pelas inundações estão lá há mais de 50 anos.

O administrador da planície de inundação do condado não respondeu aos pedidos de comentário.

L. David Givler, hidrólogo e engenheiro civil baseado no Texas, afirmou que moradores e empresários em zonas de inundação muitas vezes não percebem o perigo que correm.

“Não acho que você encontrará alguém que diga que é uma boa ideia ter essas estruturas lá”, comentou Givler sobre as cabanas do Camp Mystic.

*Thomas Bordeaux, Isabelle Chapman, Majlie de Puy Kamp, Brandon Miller, Bob Ortega e Jeff Winter, da CNN, contribuíram para esta reportagem